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Fernando Luiz Cipriano é psicólogo. Ele possui formação em Filosofia pelo Seminário Santo Antônio (Juiz de Fora/MG), é graduado em Psicologia pela Universidade de São Paulo/SP, onde também obteve os títulos de Mestre em Psicologia Social e Doutor em Psicologia Social. Atualmente é Professor Titular de Ética Profissional da Universidade Paulista e supervisor de Estágio em Plantão Psicológico da Universidade Paulista. Psicoterapeuta de intensa atividade clínica, demonstra interesse por temas relacionados à prática clínica, à modernidade e seus desafios, à psicanálise, à identidade sexual humana, à fenomenologia, às questões morais e éticas entre outros. É autor de Matriz Terapêutica e os equívocos da prática clínica em psicologia, Annablume, 2007 e A Mulher lagarto e Outras histórias, Annablume, 2010

domingo, 26 de fevereiro de 2012

O PEDÓFILO



           Ele acordou algum tempo antes do despertador tocar, lentamente abriu um dos olhos e virou-se para o canto da cama imaginando que era madrugada, que ainda faltava muito para ter de levantar, fitar seu rosto no espelho do banheiro, dizer bom dia às pessoas do prédio e demonstrar simpatia aos clientes do banco. Xavier não se lembrava da origem do costume do único olho aberto, talvez fosse coisa de criança, talvez fosse coisa sem explicação, o fato é que sempre fizera isso sem que ninguém soubesse, ninguém percebesse. Na semi-escuridão, podia brincar de um-olho-só-que-fica-aberto, pois, desse modo, sentia que as coisas, além de diminuírem, ficavam mais próximas.
        Aquela noite sonhara muito, restos de imagens desconexas e sempre tão sem sentido pairavam sobre sua cabeça e, com apenas um dos olhos abertos, tentava identificá-las. Xavier não era o tipo de homem que se interessava por mistérios e nem pela arte ou ciência de desvendá-los, mas os sonhos, ah, os sonhos, esses sempre brincaram com sua imaginação; eles, de tão distantes da realidade e cheios de combinações improváveis, serviam de brinquedo para o homem adulto, recém separado, abraçado a dois travesseiros, que insistia em prolongar a madrugada. A imagem de uma menininha correndo descalça passou rapidamente a sua frente, depois foi a vez de um pássaro grande, de asas bem azuis, parecendo uma arara, dessas de zoológico; uma tempestade em campo aberto veio na seqüência e ele até podia jurar que sentia o cheiro do mato molhado misturado àquele cheiro que a terra exala quando começa a receber água.
Xavier, embriagado pelo forte odor, enfiou a mão na calça do pijama e gemeu de prazer, quis tirar toda a roupa, quis receber a chuva, quis ganhar a rua, mas lembrou-se de que era apenas um sonho ou uma lembrança mesmo, já que estava acordado. Nessa hora, o relógio despertou, ele fez que não ouviu, mas como não ouvir um despertador que, teimosamente, aumenta o som que emite? Levantou-se, de um salto desligou o relógio, tirou o pijama, saiu do quarto, abriu a porta do apartamento, desceu um lance de escadas e se masturbou; por um instante, imaginou ter ouvido um barulhinho, aguçou os ouvidos e ficou à espreita: nada, o silêncio era total, parecia que todos do prédio ainda dormiam. Xavier, com o coração acelerado, encostou-se no corrimão e sentindo que o frio e a aspereza do metal aumentavam sua excitação, retomou o movimento de vai e vem e gozou novamente. Foi tudo muito rápido, quando atinou com as coisas estava debaixo do chuveiro, no seu confortável banheiro, sentindo a quentura da água.
          Era estranho, pensara, não se lembrava de ter os sentidos tão aguçados; suas costas começaram a arder e não fez menção de passar qualquer remédio, na verdade, queria que continuasse a doer pelo dia adentro. Ele achou que estava diferente, sempre fora arredio a qualquer manifestação mais intensa de sentimentos ou sensações, o que se passava? A única exceção dizia respeito aos seus dois filhos, um menino de sete e uma garotinha de cinco. Em relação aos filhos, sentia um amor vertiginoso, encorpado, inexplicavelmente denso; um amor capaz de mantê-lo vivo e disso se orgulhava porque sabia – naturalmente - expressar seus sentimentos, sabia comunicar-se com as crianças. Xavier, no exercício da paternidade, não exagerava, não insistia, não impunha, não negligenciava: era um pai perfeito, havia nascido para aquilo.

A imagem dos filhos

A lembrança dos filhos fez com que voltasse a se sentir tranqüilo e em paz; ainda sem roupa, retornou ao quarto e observou a fotografia dos dois que estava sobre a cabeceira da cama: Letícia e Guilherme, pronunciou baixinho; pela milionésima vez concentrou-se no sorriso deles, que era do que mais gostava, pois passava uma inocência que chegava a confundir. Xavier ficaria indefinidamente a-observar, mas um senso de dever o fez voltar ao cotidiano, precisava se arrumar, vestir o terno, selecionar alguns papéis e, como já estava atrasado, não queria inventar explicações para seu chefe. Nos últimos seis meses, que era o tempo em que se efetivara a separação, teve de faltar além do previsto porque não conseguia erguer-se da cama e, tendo se ausentado diversas vezes, não sofrera qualquer represália por parte de seus superiores.
Um resto de sonho apareceu em sua mente quando entrou no carro e fez manobras na garagem do prédio, era uma letra de música, uma cantiga de roda, muito comum no interior; ele achou graça naquilo e foi cantarolando para a agência do banco em que era gerente-administrativo. As responsabilidades de sempre o esperavam: números, contas, funcionários solicitando orientação, extratos, computadores. Xavier aprendera a se acostumar com sua função e, de tão acostumado, gostava do que fazia; também parecia que apreciavam seu trabalho porque freqüentemente recebia elogios, gratificações e até convites para ascender na hierarquia da empresa.
Em sua sala, sobre a mesa, as mesmas fotos de Letícia e Guilherme que, há pouco, acabara de ver; do porta-retrato - automaticamente - olhou para as belas orquídeas brancas que enfeitavam o ambiente. O gerente apreciava flores e sua secretária deveria trocá-las todos os dias pela manhã; os dois haviam estabelecido uma espécie de ritual em relação à troca matinal: ela chegava primeiro, ocupando-se em providenciá-las e em surpreendê-lo com uma flor vistosa, delicadamente perfumada. Xavier, por sua vez, ficava imaginando que espécie de flor encontraria sobre sua mesa - bem próxima da foto dos filhos - e que perfume ficaria respirando quando recebesse alguém em sua sala e, ainda, se a pessoa em questão ao perceber, faria algum tipo de comentário.
Ele, geralmente, levava as flores, no final da tarde, para casa, isto é, se fossem resistentes e se ainda estivessem inteiras, belamente constituídas. O gerente queria que seus filhos soubessem apreciá-las, era uma questão de honra e estava se saindo muito bem porque os dois adoravam parar diante de floriculturas e perguntar sobre os mais variados tipos de plantas e flores. Era assim que vivia, trabalhando, vendo as crianças crescerem, dando vazão a uma ou outra coisa de que gostava, sem maiores pretensões. Ele não sabe precisar bem como começou, porém, entre um atendimento e outro, passou a sair com uma das clientes do banco; coisa sem importância, de prazer momentâneo, circunstancial, mas que resultou no motivo da separação porque sua mulher descobriu e não hesitou em colocá-lo para fora de casa.

  • A separação

Isso sim tinha importância, agora Xavier fora dolorosamente atingido; a impossibilidade de conviver com as crianças era coisa sem explicação e de uma injustiça revoltante, mal visitada, formada de lodo, obscurecida. Toda vez que tentava repassar os acontecimentos da separação para ver se descobria algo, para ver se captava algum detalhe que pudesse indicar esperança, reconhecia - assustado - que perdera a capacidade de relacionar-se com os fatos de maneira cronológica e sentia, outrossim, a movimentação de um turbilhão, a girar, a puxar, a girar, a sacudir, a girar, a expulsar, a girar, a girar.
A ex-mulher não criara empecilhos em relação às crianças, estava disposta a compartilhar a guarda, a decidir tudo de comum acordo, a manter intacta sua imagem de pai. Xavier não se consolou com essa atitude, queria as coisas como antes, não achava justo que seus filhos sofressem por causa de uma aventura; ele mal podia acreditar que agora estivesse acontecendo consigo o que sempre o surpreendera em determinadas atitudes, aquelas em que as pessoas atribuíam a situações inconsistentes, duvidosas, fugazes e específicas um caráter definitivo, absoluto, irrevogável.
             Ele, de início, preferiu ficar com as crianças apenas no final de semana, todo final de semana, repetia para si mesmo; sentia-se assim mais seguro porque ainda não conseguira juntar forças para incluí-las num cotidiano cheio de horários e importantes pequenos detalhes. O gerente sabia que seus filhos sofreriam mais diante de um pai atrapalhado, de vez em quando ausente, de vez em quando prostrado, de vez em quando melancólico. E Xavier, virgem de tudo em termos de separação, atribuía a ela o que pudesse lhe acontecer, fosse a coisa mais simples, fosse a coisa mais angustiante, a explicação vinha imediata: era por causa e por conseqüência da separação.

- A Organização

Uma de suas primeiras reações - e disso ele achava graça - fora a sensação de liberdade para transar e para fazer do sexo uma escola a ser freqüentada. Tratou de arrumar alguns encontros e de experimentar situações apenas imaginadas; não era um homem versátil, mas como nessa área sempre se encontra gente que seja, andou fazendo coisas pouco convencionais.
Foi numa dessas saídas noturnas arranjadas com facilidade que ele soube da Organização. Xavier riu do nome, parecia coisa de burocrata; não lhe revelaram muito e se quisesse saber mais teria de conferir: acontece uma vez por mês, num sítio, durante um final de semana; o que se faz lá é transar, todo o tempo, de todas as maneiras, sem drogas, sem violência e com preservativo. São todos adultos e você pode transar a dois, a três, com dez ou com trinta, depende de você. Recolhe-se uma quantia em dinheiro para a comida e a bebida, que é servida de tempos em tempos; há uma piscina, uma área aberta, algumas árvores; há também seguranças, os únicos que permanecem vestidos, garantindo a não-violência e o não-uso-de-drogas.
Xavier, boquiaberto, não acreditava no que ouvia: Como assim? Quem organiza? Há quanto tempo existe? De quem é o sítio? Para quem entrego o dinheiro? Nada lhe disseram, apenas um e-mail para contato, o sigilo fazia parte do funcionamento, ninguém afirmaria - à luz do dia - que pertencia à Organização. “É coisa de filme”, pensava, “ou então é algo ilegal, não vou; vão distribuir cocaína, vão usar de violência, as mulheres que se arriscam a tanto devem ser prostitutas; é maluquice e da brava, não vou!”
Duas semanas se passaram sem que voltasse a pensar na Organização e, no seu esforço para estabelecer uma rotina, descobrira um belo aquário numa cidade do litoral levando os filhos para visitá-lo. Guilherme era apaixonado por bichos e ficara tão excitado que mal conseguira dormir à noite, não se cansava de falar em golfinhos, em arraias e baleias, nos enigmáticos e fabulosos tubarões. O menino citava nomes científicos, dava informações sobre a alimentação, descrevia o ciclo de vida de várias espécies, detalhava a forma de reprodução das que considerava mais interessantes e Xavier, com toda a paciência do mundo, ouvia, fazia perguntas, conversava com o filho para ver se, de tanto falar, o garoto conseguia pensar noutra coisa.
O modo como as crianças sentiam e se relacionavam com o mundo era uma aula de psicologia para aquele pai tão dedicado, e novas possibilidades se descortinavam toda vez que decidia estudar o porquê disso ou daquilo. A participação na formação da personalidade dos filhos dava ao gerente uma lucidez rara, potente, quase instintiva. Ele sabia que se tratava de algo grande, delicado, resultado de ações e reações recíprocas muitas vezes vindas de regiões desconhecidas (que já se apresentavam formadas, completas - na parte que lhe cabia). Era o único mistério capaz de conseguir seu engajamento e adesão, “eu farei o que for preciso para que tudo transcorra da melhor maneira para eles”, eis a frase que ordenava seus dias e que revelava a atribuição de uma única missão.

- O sonho

          Foi através de um sonho que a Organização voltara ao seu mundo. Ele se viu chegando num lugar que parecia um sítio e um museu ao mesmo tempo; e, nas dependências desse lugar, várias pessoas caminhavam, todas em silêncio e – curioso - sem uma peça de roupa, somente uma, ele reparara bem nisso. No instante seguinte, entrou num salão em que todos lhe sorriam e pareciam aguardar sua chegada; uma bela moça, de cabelos negros e compridos, estendeu-lhe a mão, fez um gesto de deferência e quis que a acompanhasse. Os presentes assentiram com a cabeça e Xavier ficou em dúvida se obedecia; involuntariamente, estendeu a mão direita e quando se tocaram, percebeu que estava excitado; ele recuou, ela parou e aguardou, nisso, ouviu-se um grande barulho lá fora. A moça voltou a sorrir, todos sorriram, Xavier quis perguntar, mas dessa vez, a deslumbrante mulher tomou a iniciativa e segurando sua mão, com suavidade e firmeza, começou a puxá-lo.
          Os dois atravessaram corredores, salas de variados tamanhos e cores, houve um instante em que pareceu reconhecer uma agência bancária em que estivera meses atrás; subitamente a moça parou, afastou-se e, com um movimento de cabeça, indicou uma porta adiante; o dedicado pai hesitou, será que deveria abri-la? Ele quis voltar, decidiu que não continuaria; nessa hora, suas pernas não lhe obedeciam, sentiu que afundava no chão, quis gritar e, ao olhar para os próprios pés, teve a impressão de que deles saíam raízes que o pregavam ao solo. A moça não se movera nem demonstrara qualquer reação. Xavier queria perguntar, queria pedir, mas, de repente, uma sensação de vácuo nos pés indicava que as raízes haviam desaparecido: aliviado, o gerente deu dois passos para trás.
             Era hora de partir, pensou; mas nada se movia, nem ele, nem a moça, nem a casa. Xavier desconfiou que estivesse congelado, porém, não sentia frio; “estou congelado, estou congelado”, repetia em pensamento; ele agora era o pensamento que dizia que estava congelado; enquanto era pensamento fluía permanecendo estático e fluía numa direção específica e, tudo em volta, como que observava o movimento-inerte que produzia. O que sentiu então foi rápido e imprevisível, mais estranho até que a sensação de vácuo: sofreu uma forte sacudidela que lhe devolveu o corpo de forma instantânea, abrupta, pesada, assim como num susto. O gerente se apalpou e teve certeza de que todas as partes tinham retornado.
          O pai de Letícia e Guilherme decidiu que deveria fazer alguma coisa, permanecer ali criando raízes ou virando pensamento definitivamente não, isso não. Olhou para as janelas e cogitou correr, saltar, ganhar a saída e continuar correndo até não poder mais, até chegar a Campinas, até avistar sua rua e, na sua rua, seu prédio e, em seu prédio, seu quarto e, em seu quarto, sua cama. O curioso é que suas intenções de fuga não provocavam qualquer reação em si mesmo, começou a se desesperar e olhou de soslaio para a porta, será que estava condenado a abri-la? A moça, impassível, nada dizia; ele quis se aproximar para olhar em seus olhos, quem sabe assim se afastaria, quem sabe assim diria algo, quem sabe pudesse esclarecer o que se passava. Xavier criou coragem, caminhou em direção à mulher e ao sentir seu perfume, estacou, não conseguiria se aproximar mais, aquele exótico odor o deixava zonzo.
           Eles ficaram um tempo enorme se observando, o gerente até achou que não era tempo demais, era ausência de tempo porque tudo permanecia; a moça então se moveu, foi em sua direção e parou bem perto. Xavier conteve a respiração, ela fizera o que ele queria, agora tinha a chance de olhar diretamente naqueles olhos escuros e belos. O gerente, um tanto envergonhado e constrangido, se concentrou e quis ver o que se passava dentro: foi como ter entrado numa cápsula que acabara de partir e que ganhava velocidade, havia um movimento ritmado, crescente, harmônico, até prazeroso se estivesse relaxado para deixar-se conduzir: ele resistia, ele não compreendia, ele quase-se-descontrolava, ele francamente se opunha, parecendo assim, como dizer - e tentava buscar a palavra mais adequada: conduzido-de-forma-neutra, era isso, era isso. 
Era uma sensação neutra aquela, resultante de uma aceleração que englobava uma resistência natural” concluiu, e sendo tudo muito diferente, não conseguia usar as palavras para descrever o que se passava. Xavier sentiu o pensamento colar nas sensações e quase se transformar numa espécie de sensação-pensada que nunca se diz por que não há conquista de autonomia. O gerente então conteve o fôlego e avistou, mais para dentro, uma silhueta, a princípio de mulher, depois mesclada, depois de homem; sentiu uma vertigem, estremeceu; olhou novamente, era isso mesmo: uma mulher ia se transformando em homem e o homem, já feito, voltava à mulher original. Olhou novamente, a mulher era a bela moça para quem olhava e, o homem, ele próprio. O gerente quis gritar de pavor, a imagem da transformação era bela, porém, sentia algo sinistro, sentia que habitava uma condição de referências desconhecidas, totalmente diferente daquelas a que estava acostumado.
               O esforço para gritar o devolveu para si mesmo e a mulher se afastou, o grito saiu, ele levou as mãos à garganta e sentiu que o som atingia todas as paredes daquele lugar, todas as paredes do seu sonho, todas as paredes de si mesmo e ainda escapava para muito além. O desespero o empurrou para a misteriosa porta, que ele forçou e abriu. Uma luz forte vinha de um dos cantos da sala ampla, suavemente perfumada; o gerente precisou de alguns segundos para acostumar os olhos, a luz era de um tom azulado e ele, ofegante, não distinguia as silhuetas que, de vez em quando, trocavam de lugar. Xavier piscou, piscou e, de repente, viu meninas nuas, pequenas, esplêndidas, sorrindo para ele.

- A proposta

            Agora a vertigem se transformou num sacolejão, ele berrou, e acordou e estava sem ar e começou a tossir; queria ingerir o ar, mas não conseguia; tentava freneticamente umedecer a garganta e não conseguia, era uma sensação de sufocamento. Xavier saiu do quarto, foi para a sala, movia-se rapidamente, sufocava, estava em pânico, sufocava, tentava respirar, sufocava, chegou até a cozinha, sufocava, esbarrou num copo que caiu e espatifou, sufocava, por fim, uma pequena quantidade de ar chegou até seus pulmões e sentiu que sobreviveria.
               O gerente ainda tossiu por muito tempo: no começo, o ar foi chegando aos poucos e a garganta umedecida bem devagar; depois, foi por costume, e pensou que não pararia de tossir; mais tarde, foi por medo, porque sabia que quando tudo se normalizasse, teria de pensar no sonho e isso o fazia estremecer. Xavier, ainda zonzo, sentou-se no sofá da sala, olhou pela janela e viu que estava escuro, nem imaginava que horas seriam. Ele não sabia se queria que amanhecesse ou se preferia a penumbra e o escorregadio das formas; então deslizou do sofá para o chão, mantendo-se encostado na parte inferior da poltrona e trouxe os joelhos para bem próximo do peito, abraçou-os, curvou-se um pouco para a frente e assim permaneceu.
               O dia veio, o sol se apresentou mais forte e o gerente não se movia; o telefone começou a tocar, o interfone também, os barulhos no prédio e na cidade se alteravam e ele não se movia. O dedicado pai não sabia dizer o que sentia, também não pensava com clareza, apenas se acomodara numa posição e, vez por outra, estremecia com flashes do seu terrível sonho. Terrível, mas belo, ousava pensar; detalhista e erótico, erótico ao extremo, quase-pornográfico ousava pensar. Depois veio um estupor, que o fez desistir de rever, de cogitar, de considerar.
               O dia já estava a pino quando o gerente trocou de posição, ele gemeu porque sentiu uma dor terrível nas pernas; esticou-se, aguardou, arrastou-se para o quarto, ficou um tempo estirado no chão, levantou-se, vestiu uma roupa e saiu. Ele sabia que o porteiro tentaria pará-lo para conversar, estaria investigando para seu chefe, sua ex-mulher, seus amigos e seus pais; das outras vezes também acontecera, eles ligavam para a portaria do prédio para saber se tinha saído, se o carro permanecia na garagem e com as respostas obtidas, davam instruções, monitoravam. Xavier desconfiava que até andavam pagando para mantê-los informados, não se importava, reconhecia o carinho e a preocupação de todos e até se comovia, somente em relação à ex-mulher é que não sabia o que sentia.
             Naquele dia, no entanto, não falaria com ninguém. Fechou os vidros do carro, colocou os óculos escuros, ligou o som e olhou para o lado oposto da portaria enquanto esperava o portão abrir o suficiente para deixar o carro passar. Assim fez, ganhou a rua e num suspiro de alívio, acelerou desejando acelerar mais e mais; aonde iria? Não sabia, pensou em pegar uma avenida extensa, arborizada e deixaria seu carro conduzi-lo; virou aqui, entrou ali, desviou para longe e quando viu, estava se dirigindo para Barão Geraldo. Xavier, pela primeira vez depois do sonho, sorria; estava indo para a UNICAMP, pararia em algum belo lugar, escolheria uma árvore, a ela daria um nome de peixe para lembrar-se de Guilherme e por ali permaneceria vendo o restante do dia transcorrer.
              Antes de escolher o local em que pretendia passar as próximas horas, parou numa padaria e pediu, para viagem, um lanche num pão de baguete e suco de melancia: o seu estômago se fazia existente e tudo parecia indicar o retorno da normalidade. Deu voltas e mais voltas, tinha todo o tempo do mundo, para que a pressa? Se podia escolher um belo lugar, deveria dedicar-se a apreciá-lo antes de definir-se; numa volta, viu duas árvores que cresciam bem próximas, cujos galhos formavam um entrelaçamento curioso, que lembrava a forma de um golfinho; “preciso trazer o Guilherme aqui, ele não vai acreditar”, pensava enquanto reduzia a velocidade. Ao sair do carro, tirou os óculos escuros e deixou o sol bater em seu rosto. Aquela quentura conseguia animá-lo e Xavier defendia uma curiosa teoria, ele considerava que o sol tinha relação com a alma humana, que podia animar os desanimados. Depois do rosto, deixou que o sol atingisse suas costas, por fim, ajeitou-se debaixo do entrelaçamento, comeu seu lanche, encostou-se no tronco de uma das árvores e um flash do sonho passou a sua frente.
             O gerente achou que era hora de pensar no que pudesse significar tudo aquilo. Nunca tivera um sonho tão bem sonhado em termos de continuidade, de complexidade, de beleza, de riqueza de detalhes e de mistério. Era outro mundo sem dúvida, ele dizia para si. Mas que mundo era aquele? O que pretendia lhe revelar? O que pretendia dele? Xavier tinha uma intuição clara sobre o que sonhara, havia uma proposta naquelas imagens, ou melhor, no significado existente nas imagens; subitamente, o pai dedicado, sentia-se especialmente inteligente, esbanjando sofisticação: estava sob o sol, debaixo de árvores tratando de significados veiculados através de imagens.
              Havia sim um aspecto inovador e de ampliação naquelas imagens, isso o animava, porém, havia outra região que era tão desconhecida que fazia com que sentisse horror sem identificar o porquê; a sensação de ser convidado para algo que parecia ter aceito era absolutamente aterradora, “como posso aceitar algo que desconheço”? Uma proposta aceita, era esse o sentido do estranho sonho - esse pensamento veio com tanta desenvoltura e clareza que o gerente se alegrou; faltou pouco para saltar num gesto comemorativo. Ele conseguira avançar em suas reflexões e se animava porque poderia decidir se aceitaria ou não a proposta ali contida; “ah, quando se conhece, se consegue evitar” pensava, e esse pensamento o animou, quase o excitou.
            Outra coisa que percebia é que ultimamente se excitava com uma facilidade incomum e pelo motivo mais corriqueiro; “isso é bom ou ruim?” Ele não sabia, o que sentia era medo da falta de controle; o pai de Letícia e Guilherme sempre defendera que qualquer descontrole conduzia ao prejuízo, então haveria de se tomar cuidado com os excessos; “mas como se controla a excitação?” Em relação a isso nada poderia fazer e outra pergunta se interpôs: “será que faz parte do convite aceito?” A rapidez de raciocínio agora o incomodava, julgou que a ereção eficiente e duradoura fosse um sinal inequívoco do sim pronunciado a algo que desconhecia por completo. Um arrepio percorreu todo seu corpo.

- O dia seguinte

             Xavier voltou para casa, não queria mais pensar no sonho; o que ele queria era sua rotina de volta. Ao chegar, dirigiu-se à portaria para saber o que se passara; como suspeitava, seus pais, sua ex-mulher, seu chefe, dois amigos e sua secretária haviam telefonado para a portaria. Os seus pais fizeram mais: foram até lá, esperaram duas horas e disseram que voltariam à noite. O porteiro mencionara que sua mãe estava muito preocupada; o gerente desconfiou, pelo tom de voz do rapaz, que ela havia chorado; agradeceu, colocou os recados no bolso e subiu.
Ele tinha decidido ligar para todos assim que entrasse no apartamento, mas desistiu, foi tomar banho, colocou uma música, reviu fotos dos meninos. O telefone tocou, Xavier atendeu, reconhecendo a voz preocupada de sua jovem mãe; conversou calmamente, foi gentil, contou que amanhecera triste e que não conseguira trabalhar; ela insistia em vê-lo, dizia que estava angustiada por causa de um mau-pressentimento, que temia por ele. Xavier sentiu pena da mãe e, para tranqüilizá-la, decidiu que almoçariam juntos no dia seguinte. A mulher se acalmou, perguntou pelos netos, falou de outras coisas e desligou; quando ouviu a palavra “netos”, o gerente se deu conta de que ainda não falara com as crianças, por isso, telefonou para eles e sentiu a paz retornar, como sempre.
              No dia seguinte, ao entrar em sua sala, no banco, sentiu um contentamento fora do comum quando avistou, sobre a mesa, a antiga placa com seu nome e função - José Xavier de Toledo Pires, Gerente Administrativo -; a placa era a evidência mais segura de que havia retornado a este mundo; então retirou o paletó, apreciou as flores, sentou-se e trabalhou. A secretária, que discretamente, observava tudo, não se aproximou; de certo, não queria incomodar e essa moça estava se tornando realmente uma amiga especial, pensava ele. De três coisas não podia se queixar: da falta de amigos, nem da falta de filhos maravilhosos e nem do desamor de seus pais; era, portanto, um homem feliz, concluiu.

- A viagem

Três meses se passaram e nada de extraordinário acontecera, tudo permanecia tranqüilo; Xavier gostava dessa palavra e ao utilizá-la alterava – de certo modo - o seu significado: para ele, tudo estaria tranqüilo se indicasse a permanência do estado atual, assim, mesmo que fincasse residência no ponto mais concentrado de uma dolorosa dor, estaria tranqüilo se tivesse aprendido a se acostumar com o sofrimento. No final desse período, que coincidiu com o início da primavera, recebeu um e-mail comunicando um treinamento para gerentes, na cidade do Rio de Janeiro. Era algo que há muito desejava e que, inclusive, já havia dispensado duas oportunidades: primeiro foi por causa de Guilherme, com pneumonia, dois anos atrás, e depois seu pai, com problema no coração, há dez meses.
              Xavier aceitou prontamente o convite e ao conversar com as crianças não encontrou oposição da parte delas, pois seriam apenas quinze dias e logo estariam juntos novamente. A sua mãe foi quem não gostou da idéia, ainda não confiava que o filho pudesse afastar-se. D. Cristina mencionou seu receio a Xavier que, apesar de gentil, começou a achar que estavam passando dos limites. Ele considerou aquele treinamento como uma espécie de férias-com-pequenas-obrigações, nada que o impedisse de descansar e se divertir; aliás, seria sim uma excelente oportunidade para ficar distante de tudo e de todos, com exceção dos filhos, é claro.
             Em dois dias estava tudo acertado, sua secretária tomou as providências com a mesma dedicação e competência que lhe era peculiar e o gerente despediu-se com lágrimas nos olhos; no aeroporto, Letícia e Guilherme, junto com a avó, acenavam e mandavam beijos; Xavier correspondia aos acenos enquanto secava os olhos com o seu fiel companheiro de viagem - um lenço verde oliva, de seda, que recebera de presente de seu pai quando fora promovido a gerente. Ele partiu.

- As possibilidades

José Xavier de Toledo Pires, quando se viu no Rio de Janeiro, perdeu assim - de cara - o entusiasmo pelo treinamento; foi imediato, a primeira baforada de ar que recebeu ao descer do avião levou consigo toda a motivação profissional que recheava aquela alma. Ele então pensou que pudesse ser o cansaço, que queria e que merecia se divertir, que há muito não tirava férias, que daria um jeito de saborear os prazeres que a cidade pudesse lhe oferecer. É que ninguém vem ao Rio e volta impune, cogitava, eis uma cidade do prazer e da beleza. Enquanto se acomodava e abria a janela do seu quarto no hotel, agradeceu mentalmente à secretária pela escolha e percebeu seu peito inchando como se processasse sensações. O peito contraiu e Xavier sentiu uma gana de sensações extremas. Ele não se inquietou, pois, começava a se acostumar com essas “manifestações psicossomáticas”, era esse o nome que encontrara para o que vinha acontecendo consigo.
              O gerente olhou em volta e não encontrava o que necessitava, precisava de algo que o testasse; movido pela gana, o dedicado pai precisava sentir o impacto do extremo; então pegou o telefone, pediu gelo, queria que viesse num recipiente grande, no maior que tivessem e, enquanto aguardava, pensou que enfiaria toda a cabeça no monte de gelo assim permanecendo até que a saciedade viesse coberta, delicadamente satisfeita. Ao receber o que havia solicitado, ficou surpreso consigo mesmo porque se deitou de barriga para cima, no chão, e pegando os cubos de gelo, colocou-os sobre as pálpebras dos olhos, pressionando. A dor misturada à sensação da água gelada escorrendo pelo rosto lhe disseram do que necessitava: de sensações específicas.
               A tarefa não lhe parecia tão descabida nem tão difícil e mais: estava disposto a experimentar. Ao se pentear e se perfumar para ganhar a noite carioca já não era mais aquele homem que descera do avião, podia jurar que ao olhar-se no espelho via também a bela mulher do seu sonho colada numa dobra de si-mesmo: ela estava presente, discretamente fatal, delicadamente insaciável e - quase a sorrir - adolescentemente irresistível.
              Xavier aprendera, no exato instante em que sentira a necessidade, que a gana de sensações específicas consiste num império entre impérios, e que sua tarefa, revestida de esperteza, deveria ser a de dar condições de manifestação e hegemonia a um império por vez; feito isso, seria o momento de avaliar o grau de saciedade atingido, ou seja, o poder de alcance de cada império para, no final, hierarquizá-los. A sua inteligência voltou a assombrá-lo, mas dessa vez não tinha tempo a perder, o Rio de Janeiro era a sua casa.
             A primeira noite foi dedicada ao sexo a três, ele e mais duas mulheres; a especificidade que elegeu como a mais potente fora o contraste entre o suave e o viril: através do toque, por instantes, conseguira fazer o viril ter uma pele macia mantendo a potência. A segunda noite foi dedicada ao sexo a três, ele, outro homem e uma mulher; a especificidade que elegeu foi o beijo entre homens, era como se por instantes, a semelhança pudesse tornar-se erótica e afetuosa: Xavier descobrira, nesse beijo, uma alta voltagem, quase inigualável, porém, fugaz e um tanto culposa. A terceira noite foi dedicada ao uso de drogas no sexo, dois homens e duas mulheres; cheirou cocaína e elegeu a entrega absoluta sem qualquer possibilidade de retomada: o seu prazer e sobrevivência dependiam inteiramente da sorte. A potência que descobriu foi a do aniquilamento, do que é desfeito e passa ao estágio de poder captar - tudo e qualquer coisa - que se ofereça.
              A quarta noite foi a do sado-masoquismo, dois homens e duas mulheres; a especificidade que elegeu foi o uso da força extraindo prazer, enquanto batia: a potência que descobriu foi a irmandade entre sensações opostas, o prazer e a dor. A quinta noite foi a do movimento e da exibição, dois homens e duas mulheres que dançavam e se exibiam; a especificidade que elegeu foi a apresentação do erotismo através das formas em movimento: potência que atribui à visão a excelência dos sentidos. A sexta noite foi a do fetiche, dois homens e duas mulheres, fazendo do que é parcial a totalidade do prazer; o que elegeu foi a atração exercida pelos seios conduzindo ao clímax do ato sexual: a potência que se evidenciou foi a da parte que se incumbe de representar o todo. A sétima noite foi de descanso e solidão, e elegeu o silêncio como terreno que nutre, possibilita e consolida o que se fez (e o que se há de fazer): eis a potência dos significados atribuídos às experiências, que sendo anterior, as reconstrói e as viabiliza.
             Havia uma última possibilidade que o gerente adiava; é que nas experimentações anteriores, nenhuma especificidade fora capaz de proporcionar uma satisfação completa à gana de sensações. Algumas se aproximaram, bateram no 9.0, mas havia uma que ele desconfiava que pudesse fazer o dez se consumir de saciedade: a relação sexual com uma garota, uma adolescente de uns 15, 16 anos, talvez 14. O gerente sabia que se tratava de um crime, mas crime por crime, o uso da cocaína também era ilegal e não sentira medo algum; no entanto, uma menina era diferente, envolvia uma pessoa em formação, pensava, o que o transformava no autor de algo que pudesse realmente prejudicar alguém. Essa especificidade era muito atraente, mas decidiu que não iria experimentar; nem tudo precisava acontecer, refletia; a gana das sensações pode muito bem se contentar com o que já foi saboreado e com as calientes lembranças do banquete.
            Na segunda semana de treinamento, ele resolveu se dedicar ao curso, precisava fazer contatos e ampliar sua rede de relações; evidentemente que seria um sacrifício, mas o gerente se dera conta de que também sabia representar. A versatilidade que adquiria era realmente espantosa, descobriu que facilmente poderia criar um roteiro, pensá-lo de forma coerente e aplicá-lo sem que parecesse falso: tom de voz, postura corporal, pequenos detalhes que revelavam a expressão dos sentimentos e que - necessariamente - incluíam a reação das outras pessoas poderiam ser associados à naturalidade para transformá-lo no protagonista do próprio interesse. Foi o que fez, representou envolvimento e simulou dedicação e interesse; e era tão natural que parecia autêntico e somente se dava conta de que seguia um roteiro pré-determinado quando a gana das sensações específicas movia-se em sua alma, quando deixava seu leito ardente para espreitar através dos olhos de Xavier.
              A praia e aquele mar que hipnotiza, que tudo pode e que concentra mistérios, ele aproveitou pouco; saiu para comprar lembranças para todos, assistiu a uma peça de teatro e quando viu estava arrumando a bagagem para voltar. Não se entristecera, tinha a impressão de que retornaria em breve, de que adotara aquela cidade como uma segunda terra natal e que, mais cedo ou mais tarde, estaria desembarcando em terras cariocas.
  • Um novo homem
O retorno para Campinas marcou uma nova fase na vida de Xavier e, assim que se deparou com o filho, D.Cristina notou a mudança, porém, não fez comentários para não estragar a alegria do reencontro. Ele olhava para as pessoas com mais firmeza, com modos diretos, um jeito objetivo, uma fala precisa; sua secretária também percebeu no primeiro contato, mas não sabia se era bom ou ruim. O que as pessoas que o cercavam sabiam era que, mais dia menos dia, haveria uma modificação, o gerente não poderia passar o resto da vida vivendo as conseqüências da separação.
As crianças não perceberam qualquer alteração; é que para elas, o papai seria sempre o mesmo e tanto Letícia quanto Guilherme usufruíam dessa certeza, faziam dela uma importante referência afetiva para enfrentar as vicissitudes da existência. Os dias transcorreram e o gerente trabalhou como nunca, tinha mais energia, tinha mais sensibilidade no trato com os clientes e representava tão bem que - praticamente – não se desgastava porque não se envolvia a ponto de se irritar.
O pós-expediente é que passou a lhe incomodar, o que teria para fazer? Ele cogitou retomar os estudos, fazer um curso de pós-graduação, por exemplo; era uma excelente idéia aquela, mas teria que aguardar uns meses e enquanto isso? Ir além ou estar além implica exatamente nisso, pensava, como agüentar o peso das horas? Como conviver com a mesmice do cotidiano? Como aceitar a arrastada e obesa falta de criatividade existente em boa parte do que se vive e faz? Ele desatou a assistir filmes de todo tipo; comprou livros e revistas sobre cinema, passou a buscar estréias e ambientes onde se respirava o assunto e se imaginou com muito dinheiro produzindo espetáculos.
Olhou para suas atividades e vasculhou algum talento artístico, algo que pudesse direcioná-lo; tinha a recente capacidade de representar, mas o fazia para-si, portanto, não dava para transportar para o palco. Identificou um tino para organizar, produzir, juntar pessoas; talvez fosse por aí, mas em quê? Não sabia, no entanto, podia ser um começo; também cogitou mudar-se para um grande centro, para um lugar cosmopolita, com todo tipo de gente, com a diversidade presente no arroz com feijão; era outra possibilidade, no entanto, ficaria longe dos meninos e essa idéia era inconcebível.
  • As rajadas
Outros dois meses se passaram e, numa noite quente de novembro, Xavier, de madrugada, saiu com o carro, rumo a um bairro distante do seu; parou então numa rua deserta, tirou a roupa, colocando-a no porta-malas e andou a pé e nu, dois quarteirões. Ficara excitado com a proeza e se masturbara próximo ao portão de uma casa; andou mais duas quadras e ouviu vozes de mulher, era muita sorte, pensou; vinham em sua direção e passariam perto; encostou-se numa árvore e esperou. O que faria? Desejou que fossem adolescentes e que faria uma brincadeira; as vozes ficaram cada vez mais próximas e o gerente podia apostar que eram de meninas novas sim, quase não se conteve de excitação e por pouco não colocou tudo a perder.
Calculou o tempo que gastariam para passar exatamente no lugar onde estava e se esfregando na árvore começou novamente a se masturbar; quando as meninas passaram, disse: “oi, garotinhas!” E gozou, e acostumado com a semiescuridão, mirou e acertou rajadas de esperma, nas mãos, na calça e na blusa delas. As duas ficaram petrificadas; uma soltou a bolsa, que ao cair quase acertou o pé do gerente; ele, com eficiência e classe, pegou a bolsa, cheirou-a dando um beijo bem demorado; depois, colocou-a no mesmo lugar em que caíra, correu, pegou a chave que escondera atrás de uma planta que ficava próxima do carro e arrancou. Ao avistar a silhueta das meninas teve o cuidado de dar marcha a ré, dobrar uma esquina, pegar outra rua e, em questão de segundos, desapareceu.
A gana das necessidades específicas não deixou que voltasse para casa, teve de parar noutra rua deserta para se vestir e ganhou a madrugada bebendo. Entrou num bar e bebeu, pediu cigarros; quis cocaína, não conseguiu; queria transar, não conseguiu; então bebeu, bebeu, bebeu. Acordou com o sol batendo em seu rosto, abriu um dos olhos e tentou lembrar-se do que acontecera, imediatamente as lembranças se apresentaram: reviu a cena do esperma atingindo com precisão as jovens petrificadas, depois foi a vez do bar em que bebera e nada mais, não se lembrava do que acontecera depois. Xavier abriu o outro olho, levantou a cabeça e viu que estava na rua, dentro de seu carro, estacionado bem longe do bar em que entrara para continuar se fartando.

  • A vergonha

Olhou o relógio, meio-dia e meia, sentiu fome e vergonha. A vergonha era tão densa que o gerente se encolheu, queria livrar-se desse sentimento desconcertante ocupando menos espaço, no entanto, sua alma havia marcado um encontro com a vergonha e as duas não iriam buscar a despedida tão cedo. O dedicado pai gemeu de dor, saiu do carro, olhou para o sol, fez mais uma tentativa, queria que a luz daquele astro amenizasse os efeitos da vergonha. Nada conseguiu, a vergonha não cederia, instalada, se espojou; Xavier entrou no carro e partiu, ao invés de ir para casa, dirigiu-se para a saída da cidade, pegou a rodovia dos Bandeirantes e acelerou, chegou a cento e oitenta, pois pensou que a rapidez do movimento pudesse assustar a vergonha, e, mais uma vez, nada conseguiu.
Por um instante a vertigem da alta velocidade insinuou uma queda, seria um ato de continuidade, a velocidade ao extremo, um vôo excitante e a interrupção com o fim. Seria perfeito, pensou, mas logo em seguida, o sorriso de Letícia e Guilherme apareceram bem no ponto em que a estrada se confundia com o horizonte. Xavier tirou o pé do acelerador, firmou a direção e foi diminuindo até chegar a cem por hora. O sorriso das crianças não diminuiu a vergonha que sentia, porém, lhe trouxera esperança, e decidido a continuar em movimento, parou o carro num posto próximo a Jundiaí e se dirigiu a pé para essa cidade. Ainda estava a vários quilômetros, mas era - exatamente - disso que precisava, queria diminuir a vergonha através da exaustão.
A cena do esperma atingindo as adolescentes voltara, era horrível o que fizera; o gerente sabia que as tinha atingido num ponto básico, sagrado, estrutural. O que sentia não tinha qualquer relação com princípios religiosos ou morais, não estava preocupado com o castigo que viria do céu ou com a denominação de indecente segundo valores corretos, porém, medíocres, que restringiam ao extremo a expressão das individualidades. Xavier estava muito além disso, talvez sempre estivera; o que o incomodava com força brutal era ter atingido uma região preciosa e o fato de tê-la atingido através da violência, para destruir. Sentia que tinha traído a confiança mais confiada que pudesse existir, evidentemente que estava pensando em seus filhos; de algum modo, aquelas adolescentes estavam relacionadas com Letícia e Guilherme.
Inúmeras vezes, o gerente sentiu na pele a dependência e a vulnerabilidade dos filhos para com ele; inúmeras vezes sentiu que poderia fazer o que bem entendesse com as crianças e que isso determinaria – de forma irrevogável - o futuro dos dois. Ele também sabia que o que regulava para o bem aquela forma de relação era o amor, e tentou dimensionar esse tipo de amor maior, que faz com que o pai ou a mãe ofereça – sem pensar – a própria vida, em troca da vida dos filhos. Haveria mistério maior do que esse? Haveria doação maior do que essa? Para Xavier não se tratava de romantismo ou pieguice, tratava-se da experiência amorosa que conduz ao extremo: a abdicação de si para que outro possa permanecer, e com a convicção de que se fez o que se deve fazer.
             O gerente sabia que não havia forma de amor mais poderosa do que essa porque os laços construídos são eternos, não sofrem o desgaste do tempo e envolvem as individualidades bem mais do que possam supor, desejar ou negar. Essa forma de amor torna o ser humano naturalmente ético, porque a sobrevivência da prole se constitui numa lei que inclui o sacrifício da própria vida e Xavier soubera colocar-se do lado positivo dessa lei de constituição: ele soubera usá-la para promover o bem estar estrutural de Letícia e Guilherme e disso podia se orgulhar. Todos os dias, o pai perfeito poderia encher o peito de satisfação e dizer: “apesar das dificuldades da existência, eu sou um dos que conseguiu fazer da paternidade a expressão positiva da mais poderosa forma de amor que existe”.
Era por esse motivo que sentia vergonha, uma vergonha pela traição cometida, pela invasão violenta, pela grosseria infame, pelo desrespeito à lei natural de amor à prole.
Era por isso que poderia andar o resto do dia, do mês e da vida; chegara a Jundiaí; entrou na cidade, andou por ruas desconhecidas, horas a fio. Não parou para comer nem para urinar nem para telefonar, não parou, nunca mais encontraria uma forma de parar. Andou através da tarde que caía, andou através da noite que se construía, andou pela madrugada solitária, porém, tenra e delicada de um novembro quase dezembro. Andou.
A vergonha não cedera diante da exaustão, o gerente estava a ponto de desmaiar, precisava encostar-se, precisava de água, precisava deitar-se. Xavier avistou um pequeno hotel, entrou, fez um esforço enorme para falar, preencheu a ficha, hospedou-se, pediu água, pediu comida e dormiu.

  • O início do fim

O telefone tocava insistentemente, o que o obrigou a acordar e a atender; era um funcionário do hotel perguntando se estava tudo bem, pois, dormia há dois dias. Ele disse que era apenas cansaço, que não se preocupassem e aproveitou para pedir um lanche reforçado. Dois dias, meu Deus; devem estar pensando que algo grave aconteceu comigo, o carro fora da garagem e nenhuma pista da minha localização. Ligou para sua mãe, que estava em prantos; não sabia o que dizer, inventou que resolvera viajar porque precisava ficar um pouco sozinho; garantiu que estava bem e que logo voltaria para casa, desligou. Em seguida, telefonou para o seu antigo apartamento e ouviu a voz angustiada da ex-mulher; as crianças correram para perto do telefone, podia ouvir seus passos e perguntas, queriam saber se era o papai delas.
Xavier, pela primeira vez, sentiu tristeza na voz dos dois; não ter notícia alguma era bem diferente de saber que o carro estava na garagem e ele no apartamento. Guilherme contou que tivera um pesadelo em que o gerente decidira viajar para um lugar distante, tão distante que até falar por telefone era difícil; Letícia disse que pedia ao Papai do Céu para proteger o seu papai e Xavier precisou fazer um esforço enorme para continuar conversando. Por fim, conseguiu tranqüilizá-los combinando um jantar com os dois na casa da vovó, pedindo que a avisassem.
Ao desligar, não agüentou a pressão e chorou; um choro repleto, demorado, contínuo: estava ficando insuportável tudo aquilo. A tristeza na voz dos filhos e o desespero na voz de D. Cristina o fizeram sentir-se culpado; quis contar para alguém o que se passava, quis relatar nos mínimos detalhes a grosseria infame, quis compartilhar a solidão inteligente, mas potencialmente perigosa, quis novamente sentir esperança através das coisas simples da existência.
Em relação ao carro, não sabia o que acontecera; talvez o tivessem localizado no posto e rebocado, daí o desespero de todos porque poderiam imaginar o pior. Ligou para o seu pai, que confirmou suas suspeitas; o carro havia sido rebocado e, em algumas horas, a polícia entraria em ação. O pai do gerente queria saber onde estava, oferecendo-se para buscá-lo, mas Xavier disse que não e garantiu que, à noite, estaria em Campinas; bateram à porta, era o funcionário do hotel trazendo o lanche que fora pedido, ele enxugou as lágrimas, despediu-se do pai, abriu a porta, agradeceu e devorou a comida.
              Ao deixar o hotel, decidira procurar tratamento, necessitava de um psicólogo; o gerente sentia que precisava interromper aquele processo, que devia mudar a direção que havia tomado. Lembrou-se do sonho e de sua proposta, perdera o medo, agora era capaz de considerar os significados ali existentes: aquilo era um convite para invadir o espaço sagrado e destruí-lo, no entanto, sempre o preservara, era assim que se definia e – definitivamente - não cederia à tentação.

- A tentativa

           O retorno dessa vez foi penoso porque as pessoas mais próximas voltaram a se preocupar e a esperar, inclusive, o pior. Havia uma sombra no olhar de D. Cristina, de seus filhos e de sua secretária; em relação ao seu pai, havia um ponto de interrogação nos modos, na entonação de voz, nas entrelinhas. Xavier resolvera pedir à secretária a indicação de um psicólogo e a moça, satisfeita, indicou-lhe uma Clínica-Escola em que uma amiga havia sido tratada; ele poderia, inclusive, pedir uma indicação caso preferisse conversar com alguém formado há mais tempo. O gerente não sabia como proceder, não gostou da idéia de ser atendido por uma estagiária, porém, ainda sentia vontade de desabafar, de arrancar de si, de uma vez por todas, as experiências dos últimos meses. Decidiu que iria e que, na hora, dependendo dos acontecimentos, resolveria o que fazer.
          A Clínica funcionava num belo sobrado, num bairro nobre da cidade, o Cambuí. Xavier gostou do que viu, foi bem tratado, preencheu a ficha de identificação e não demorou para ser chamado por uma moça de uns 22, 23 anos, bonita, de voz suave. Ela o deixou à vontade, explicando em poucas palavras que se tratava de um Plantão Psicológico e silenciou. O gerente tomou fôlego e disse que precisava de um tratamento, que preferia que fosse com alguém mais experiente e que não o levasse a mal, mas que não sabia se conseguiria conversar com alguém tão bonita, jovem e ... Ela acrescentou: “inexperiente”. Xavier fitou-a com interesse, parecia inteligente e forte, agüentaria sim, concluiu; não se ofendera também, sabia diferenciar as coisas, ele é que estava com dificuldade para falar o que tinha para falar. A moça deixara o silêncio se esticar, não se precipitara em oferecer uma indicação, observava-o com naturalidade.
           “É que as coisas não andam bem há algum tempo, depois que me separei, sabe?” E o gerente contou resumidamente o que se passara nos últimos meses, no entanto, ele omitira o sonho com a Organização, as experiências no Rio de Janeiro e a madrugada com as adolescentes. A moça ouviu com atenção, fez uma ou outra pergunta e, ao final, mencionou a desconfiança de que ele queria falar mais, contar outras coisas. O pai de Letícia e Guilherme gelou: “que coisas?” Foi hostil, a estagiária não respondeu, sentiu-se descoberto, exposto, vulnerável. Não era fácil falar para uma estranha que saíra pelado de madrugada, que se masturbara no portão de uma casa, e que depois esperara duas adolescentes escondido atrás de uma árvore e, mirando bem, acertara rajadas de esperma nelas. Aí saíra correndo e dormira dois dias noutra cidade enquanto seu carro era rebocado e as pessoas que mais amava sofriam com o seu desaparecimento.
           Xavier avaliava a situação, uma coisa era precisar de ajuda outra, bem diferente, era viabilizar o pedido de ajuda; a vivência de ajuda não era fácil mesmo que benéfica, pensou; como contaria tudo? O que pensaria dele? Será que poderia realmente ajudá-lo? E a vergonha era o pior, ao repassar os acontecimentos invocaria a vergonha acompanhada da culpa e da dor. O gerente não sabia o que fazer, ela devia ter percebido porque dissera: “basta começar, Xavier”. Essa fala pegara-o de surpresa, criou coragem e relatou que saíra pelado e se masturbara no portão de uma casa, omitiu o resto; a moça quis saber se era a primeira vez, se alguém o vira e o que sentira.
          Era a primeira vez sim - omitiu as experiências na cidade maravilhosa, ninguém o vira - omitiu o que mais o preocupava, e sentira vergonha, muita. “Vergonha..., mas ninguém o viu, não foi?” Essa moça é muito esperta concluiu, mais um pouco e saberá de tudo, então se fechou; daí por diante não quis mais, decidira não falar. Ela perguntou se queria voltar ou se queria a indicação. Sem pensar respondeu que queria voltar, depois se arrependeu, no entanto, manteve o dito. Ela queria revê-lo na mesma semana, ele preferiu espaçar mais, marcaram para daí a oito dias.
           Na rua, Xavier caminhava sem destino certo, estava se tornando especialista nisso. Por que não contara toda a verdade? Tudo corria a favor, por que não contribuiu? Por que não confiou? Por quê? Por quê? Por quê? Não sabia a resposta, quis voltar, pediria socorro, diria que estava por um fio, que aceitara uma proposta e queria desfazer o acordo. O gerente deu meia-volta, andou três quadras, ensaiava o pedido, “represente no começo se ficar muito difícil, depois seja sincero”, cogitava; “avance, avance, fale”. Ao avistar o portão da Clínica, viu a estagiária que saía, estacou. Ela parecia bem mais bonita à luz do sol, estava de óculos escuros e com uma jaqueta que não usava quando o atendeu; confuso, resolveu segui-la ao invés de pedir para voltar; ao invés de implorar iria descobrir seus segredos, talvez tivesse alguns tão graves quanto o seu.
           Imaginou-se num filme de enredo excitante: o paciente que segue a psicóloga para descobrir seus segredos. Num segundo, incorporou a personagem, diminuiu os passos, pisava leve, ficava a uma distância que permitia que visse sem ser visto; ela dobrou uma esquina, entrou numa farmácia, atendeu o celular e fez sinal para um táxi. O gerente tentou fazer o mesmo, mas nenhum táxi passou a tempo e, a contragosto, perdeu de vista sua psicóloga repleta de segredos. A circunstância merecia uma comemoração, procurou um supermercado, comprou um bom vinho, um abridor e uma taça, perambulou até encontrar uma praça arborizada, sentou-se, abriu a garrafa e bebeu demoradamente, fazendo brindes à moça-estagiária-psicóloga-com-segredos-excitantes.
          O gerente riu alto, de desesperado se transformara em alegre detetive, de necessitado se transformara naquele que investiga; era curioso como conseguia fazer isso, sentia que pulava de uma forma de vivência para outra e seguia adiante como se a anterior não existisse. “Paralelas”, falou alto, “eu sou como paralelas que caminham próximas, mas que não se tocam; eis a primeira coisa que falarei para a psicóloga, que pode ser esperta, mas que não chega aos meus pés em termos de esperteza. Quem sabe driblar os piores sentimentos melhor do que eu? Quem sabe conviver com pessoas que pressentem que algo ruim virá de você? Que pai fica longe dos seus filhos e ainda mantém intacta sua função protetora?”
           Bebeu todo o vinho e quis mais, voltaria ao supermercado e compraria três, quatro garrafas; a caminho, aquela cantiga de ninar, do interior, que parecia ter sonhado, voltara. O gerente cantava alto a musiquinha enquanto seguia seu itinerário, por um instante, pensou ter ouvido a mesma música, mas cantada por outras vozes, olhou em volta, havia um parquinho e crianças brincavam de roda. Automaticamente, mudou sua direção e se aproximou, sentando-se num banco que ficava na ponta esquerda do parque, próximo à rua. Xavier cantava e as crianças cantavam também, ele queria beber e as crianças cantavam com mais entusiasmo, ele parou de cantar e a gana das necessidades específicas brilhava em seus olhos.
          Por um instante, o gerente procurou o alvo, talvez uma babá jovenzinha, desavisada, sonhadora; talvez uma mãe solitária, carente, queixosa, talvez... Os olhos de Xavier pararam diante de uma menininha que parecia ter por volta de seis anos de idade; sua alma saltou e começou a girar desordenadamente dentro do invólucro que toda alma possui, ele travava consigo uma luta definitiva, sem a menor possibilidade de redenção. O seu corpo assistia à batalha, distante, esperando apenas a ordem para agir: ou fugiria ou abordaria a menina. O que se passou ninguém sabe ao certo, ninguém poderia descrever, quem é que poderia traduzir? O fato é que ao levantar-se, o gerente já se considerava um pedófilo.

  • A potência e o ato

Aproximou-se da menina, observou com quem estava, avaliou a vizinhança, afastou-se novamente, foi discreto, quase não respirava; tinha certeza de que as babás não o viram, estavam preocupadas consigo mesmas, falavam alto, contavam casos, riam. É impressionante como as crianças ficam à mercê da própria sorte quando estão sob os cuidados delas. O gerente sorriu dirigindo-se a uma moça simpática, que usava um uniforme amarelo-claro, pediu-lhe informações sobre uma rua, foi gentil e, em poucos minutos, conhecia praticamente a rotina semanal da menininha com sua ingênua babá.
Xavier exercia a virtualidade da pedofilia, era o pólo-potência de sua nova identidade; o outro pólo, que seria o ato, ainda estava distante, a pedofilia em forma de concretude podia esperar. Ele tinha todo o tempo do mundo para se aprimorar na virtualidade, o que dava um trabalhão; no fundo, mas bem no fundo de sua alma, o gerente tinha a intenção de manter - confinada nas profundezas – a face-ato da pedofilia. Era como viver de esperança, só que às avessas; quem sabe seria apenas em potência, quem sabe pudesse trair a si mesmo?

- A virtualidade

A virtualidade não era somente divertida e excitante, era eficaz porque o mantinha ocupado e distraía a gana das necessidades específicas. Xavier agora, tinha muito o que fazer, tinha muito o que planejar-e-executar em termos de conquista de moças e de preparação para o grande desfecho. Ele não sabia qual final escolheria, mas decidiu incluir as circunstâncias na composição do desfecho para que seu roteiro pudesse contemplar a motivação alheia, o acaso, e a sorte.
O gerente não voltou à Clínica para a segunda sessão com a moça-esperta-cheia-de- segredos, nem satisfação deu, porém, disse para as pessoas mais próximas que estava fazendo psicoterapia duas vezes por semana com uma psicóloga muito competente e que já sentia os efeitos do tratamento, estava, sem dúvida, melhorando. D. Cristina se alegrou, mas não conseguia livrar-se de uma sombra densa, quase-fria que surgia em seu coração toda vez que pensava no filho. A secretária, os amigos e o pai fizeram força para acreditar e observando a mudança de Xavier, por um tempo, conseguiram esquecer e pensaram que ele, enfim, conseguira superar as dificuldades decorrentes da separação.
Em relação aos filhos, houve uma modificação, o pai perfeito estava um tanto distante, pouca coisa, mas estava; para as crianças, não fazia diferença, porque haviam armazenado cotas extras de amor e de atenção ao longo dos anos, não se intimidando com uma pequena ausência. Para o gerente, a situação era confortável, mas incômoda, pois, se por um lado se sentia livre para dedicar-se à virtualidade da pedofilia, por outro, nunca se imaginara vivendo de forma ausente em relação aos filhos. Xavier não acreditava que pudesse sobreviver desse modo e constatava – aturdido - que podia.
Três meses se passaram e ele avançara bem em seus propósitos, estava namorando duas moças, uma babá e uma mãe solteira. A babá tinha apenas 20 anos, era seu primeiro emprego e se apoiou nele para conseguir enfrentar as dificuldades do mundo do trabalho; a segunda era mais velha, tinha 30 anos, profissional liberal, morava só com a filhinha de cinco anos de idade. O gerente fez o que se deve fazer para conquistar uma mulher, manual básico, simples e infalível: ouvir, compartilhar, elogiar, falar de seus sentimentos, manifestar interesse em casar e formar uma família, mostrar-se apaixonado e fiel; isso associado a um rosto bonito e um corpo atraente é vitória garantida, tiro certeiro, abate confirmado.
Xavier aprimorou-se, fez musculação e natação; leu sobre pintores e escritores, freqüentou restaurantes românticos, aconchegantes e discretos. E não demorou, estava com uma lista de vinte pretendentes, podia se dar ao luxo de escolher as melhores vítimas. Avaliou inúmeros itens, mas o mais importante era a menininha em questão, era imprescindível que se apaixonasse por ela, que ficasse fora de si ao se aproximar e tocá-la, que sentisse suas entranhas se contorcerem ao apertá-la em seus braços. Nos finais de semana, quase sempre, colocava bermuda para os encontros com as vítimas e aguardava ansioso o instante em que aquela mão pequenininha e suave encostaria sem querer em sua perna. O gerente praticamente ficava cego, uma escuridão branco-arroxeada atingia seus olhos e tinha de fazer um esforço inominável para não se precipitar para cima da criança e se entregar ao irrefreável e terrível prazer.
              Em relação à filha da namorada de trinta anos, a delicadeza era tamanha que a primeira vez em que ela se aconchegou entre suas pernas sentiu a pressão cair e quase desmaiou; precisou ir a um pronto-socorro e permanecer algumas horas de repouso. Foi também a primeira vez que planejou passar da potência ao ato, porém, sentiu que precisava se controlar senão estragaria tudo. Tomou certas precauções para não se colocar à beira do abismo e, urgentemente, deveria aprimorar a paciência, deveria praticar essa virtude para enfrentar a face implacável da gana das necessidades específicas.

- Mais virtualidade

Das vinte candidatas, havia escolhido duas então. Seus planos consistiam em prendê-las através do amor para executar em segurança suas intenções; manteve o mesmo nome, profissão e o histórico de separado, pai de dois filhos. Alterou a história no que dizia respeito à ex-mulher, contou que não suportara a atenção que precisou despender em relação à mãe em decorrência de uma grave doença e que o desgaste foi se avolumando até culminar na separação. Foi relativamente fácil conciliar todos os seus afazeres com os afazeres dedicados às vítimas–namoradas e suas adoráveis menininhas: alternava os finais de semana e tinha o legítimo-nobre-imbatível-álibi da assistência aos próprios filhos para justificar as ausências.
Em três meses, a intimidade que conseguira era assombrosa, dormia na casa da mulher de trinta, fazia sanduíches em sua cozinha e ajudava a escolher a roupa da menininha quando tinham que sair. A outra vítima, no final do mesmo período de tempo, fazia planos de noivado, Xavier mal se conteve quando percebeu as intenções da moça numa conversa com uma amiga ao telefone. As mulheres realmente só pensam nisso, coisa mais que curiosa, cogitava, coisa até certo ponto estranha porque parecem programadas para casar; o gerente já havia depurado que, na base dessa obsessão, estava a necessidade imperiosa de ter filhos e de deles cuidar.
Enquanto fazia pose de homem-perfeito-em-todos-os-sentidos aproximava-se das menininhas e fazia com que se afeiçoassem a ele. Seria mais fácil através do afeto porque armadilha melhor não tem: o amor comporta necessariamente um aspecto erótico que pode ser neutralizado ou estimulado dependendo da situação. Isso ele também aprendera com seus filhos e era tão evidente que se surpreendia quando alguém se referia a essa forma de amor como algo neutro ou angelical e, portanto, desprovido de sexualidade. Como é que uma pessoa em forma de corpo, viva e impulsionada por necessidades exclui o sexo do afeto? Ele ria e incluía essa negação a tantas outras negligências que o ser humano se dava ao luxo de cometer ou por ignorância ou por estrita necessidade de manter-se vivo.
As duas garotinhas, Débora e Raíssa, gostaram dele rapidamente e de graça; era tão naturalmente apaixonado por elas que representava tudo de que precisavam. O gerente sabia que estava se envolvendo numa ação perigosa, porém, não se é pedófilo com tranqüilidade e aceitação social, não é mesmo? Tinha receio de que a Raíssa começasse a falar seu nome em casa e os pais ficassem desconfiados, evidentemente que a babá diria que se tratava de seu noivo, no entanto, eles poderiam investigar, tomar precauções e o risco seria maior. Outra coisa que aprimorou foi a constatação-iniciativa de que sem riscos nada se efetiva, até as coisas mais simples e corriqueiras assim se constituíam; por isso, tinha como estratégia reavaliar a situação a cada semana para definir como proceder.
               Nessa época, Xavier tirou inúmeras fotos das meninas e revelou e pendurou na parede do seu quarto e se masturbava olhando-as, roçando nelas, rasgando, cuspindo nelas; depois bebia, depois saía e buscava relações sado-masoquistas. Primeiro, quis bater, depois pedia para baterem; transou com um homem e quis ser esmurrado, gozava cinco ou seis vezes em situações como essa. A gana das necessidades específicas se enfurecia porque nada batia no 10.0; ele até conseguia aplacá-la, mas a despeito de qualquer desvario, não conseguiria enganá-la. O gerente sabia disso.

- O final de semana

O objetivo do seu plano era passar um final de semana com a namorada-vítima acompanhada da menininha quando, à noite, daria um remédio de dormir para a namorada e ficaria livre para se deleitar com a garotinha. Em seu aprimoramento, fez um curso sobre medicamentos e pesquisou os que melhor se adaptariam aos seus propósitos; queria que Débora ou Raíssa também tomassem algo para não oferecer resistência ao que pudesse acontecer.
             O final de semana juntos deveria ser uma conseqüência natural do envolvimento cada vez maior do casal, e se as namoradas sugerissem, melhor ainda. Ele trataria de escolher o local e de resolver os detalhes, preferia que fosse em outra cidade, num hotel fazenda, por exemplo, e daria a sugestão quando chegasse a hora. Xavier sentia que esse dia estava próximo e resolveu parar para pensar o que faria quando estivesse a sós com sua garotinha. É que a gana das necessidades específicas – cada vez mais - o tomava por inteiro e nada permanecia sob controle quando ela se ocupava – ultimamente - de sua alma e de seu corpo. Essa submissão absoluta de alma era descoberta recente e o preocupava, muito.
             Foi da última vez que saiu e que pediu para apanhar que sentiu que se conformava à solicitação de um modo irreversível: Xavier eclodiu, se configurou, se afirmou e se reconheceu como tal; a gana das necessidades específicas o transformava nela, acontecia uma metamorfose de alma, uma espécie de renascimento. O mais assustador é que teve a certeza de ter sido daquela forma sempre, de desconhecer outros modos humanos e, sinceramente, não se arrependia, nem se comovia, nem se culpava. Era, simplesmente.
             Em decorrência da força do ser, o gerente temia pelo que pudesse acontecer à mãe e filha quando estivesse a sós com as duas, num lugar que lhe desse a chance de passar da potência ao ato. Ele, dificilmente, conseguiria controlar-se a ponto de não deixar evidências, de poupar a menina, de não machucá-la; a gana das necessidades específicas estava à espreita por muito tempo para se contentar com chá e biscoitos. Aquilo seria uma orgia regada a muita lambança, violência e prazer definitivo, não haveria caminho de volta.
              Xavier, pensando nisso, preferiu que acontecesse então em São Paulo, na calada da noite, na cidade do anonimato, onde se pode fazer o que bem quer sem precisar perguntar o nome. Um hotel fazenda era romântico demais para um desfecho criminoso, apoteótico; de São Paulo também seria mais fácil fugir, seria mais fácil compor o disfarce, seria mais fácil representar o papel de pedófilo-em-forma-de-ato para si ou de pedófilo-em-forma-de-crime para os outros.
            Encontrou um hotel bem apropriado, era sofisticado e estava localizado no centro, próximo ao olho do furacão; na madrugada, ganharia as ruas sombrias e semi-desérticas do centro como um vampiro semi-saciado, sobrevivente, disposto a mais. Xavier comprou todos os apetrechos de que precisava, pretendia levar cordas, mordaças, medicamentos e até uma pequena adaga; nunca se sabe, é preciso ser prevenido, pensava. Assim, de planejamento, seu plano era perfeito, dificilmente haveria um contratempo; o que o incomodava eram os sentimentos que poderiam se manifestar antes e depois do acontecido, ele não sabia como se sentiria. Em relação à vergonha, ficara traumatizado, fazia de tudo para evitar sua face rubra, de traços disformes, de riso acusatório; ele, se pudesse, venderia seu braço direito para não mais encontrá-la.

  • A data marcada
             E tudo saiu como planejara: a namorada-vítima-mãe-de-Débora foi a primeira a propor o passeio em outra cidade. Ele sugeriu São Paulo, ela preferia Campos do Jordão; ele argumentou em favor das possibilidades variadas da metrópole e a mulher concordou, satisfeita. Eles definiram a data e começaram a se preparar para o passeio. Xavier se comportava como um adolescente a caminho da aventura preferida; D.Cristina não gostou da idéia, mas parecia tão absurda sua impressão que nem ao marido mencionou o que sentia. O filho deles estava alegre, falante, espontâneo e não demonstrara mais qualquer comportamento estranho; o gerente comunicou que estava saindo com uma moça, era preciso ter um motivo palpável para toda aquela movimentação, concluíra. Foi melhor assim, porque o deixaram em paz, as investigações foram encerradas e teve a liberdade de que precisava.
            Os filhos de Xavier foram poupados da notícia do namoro do pai a pedido dele mesmo, queria ter certeza de que era algo que valesse a pena para ser comunicado e ninguém se opôs, consideraram até bem justa a solicitação, porque protegia as crianças de desgastes desnecessários. O contato do pai-perfeito-agora-um-tanto-ausente com Letícia e Guilherme seguiu sem maiores atribulações, mais cedo ou mais tarde, eles sentiam que seu papai voltaria ao que era antes, coisa certa essa, cabia apenas que esperassem. Xavier, como se tornara um especialista em rumos paralelos de vivência, manteve a influência do amor pelos filhos o mais distante possível da pedofilia-virtual: tanto que conseguira separar de Letícia, com precisão cirúrgica, Débora e Raíssa.
              Ele não se confundiu em relação às meninas, “uma coisa é uma coisa e outra coisa é outra coisa”, repetia nos momentos em que vacilava; e assim foi levando, planejando, exercendo a virtualidade da pedofilia com afinco e devoção. A vantagem da virtualidade é magnífica, pensava, enquanto nela se está, não há do que ser acusado nem do que se acusar; o que eu fiz de concreto para prejudicar qualquer criança? E a resposta era: “nada, absolutamente nada; o que faço as beneficia, dou atenção para elas e – melhor – dou atenção para quem cuida delas, que pensando em ter encontrado alguém com quem compartilhar a vida se sentiam felizes e podiam cuidar melhor daquelas menininhas, apetitosamente, adoráveis”. Era assim que o gerente-pedófilo-amante-da-virtualidade justificava seus atos não efetivamente destrutivos e conseguia manter a vergonha distante, pequena, enfraquecida.
             O final de semana tão esperado enfim chegara. Partiram na sexta-feira, à noite; a namorada-vítima estava radiante e Débora agitada, tagarela, de fita na cabeça e com um vestidinho rosa, de um tom claro. Era uma menininha loirinha, de olhos esverdeados, uma autêntica princesa; Xavier sempre soubera diferenciar quando uma criança era bonita de verdade. As crianças - de modo geral - são encantadoras, e seus pais as vêem como príncipes e princesas, no entanto, algumas são de verdade, qualquer um vê, mesmo o mais indiferente dos mortais. Débora era assim, bonita-de-verdade, um encantamento, revelava uma suavidade tão espontânea que a perfeição em forma de gestos nela se efetivava. Xavier poderia ficar semanas inteiras olhando para a magnífica criança, apenas olhando, hipnotizado: ela atestava a manifestação da plenitude em modos humanos.
           O que era  arrebatador, ele mal acreditava no que seus olhos captavam e ao lado dela, respirava devagar, com medo de atrapalhar alguma coisa. Os três chegaram ao hotel duas horas depois, o gerente dirigia devagar e todos falavam, era uma felicidade só, parecia uma família feliz. A capital se mostrava especialmente bonita à noite, Xavier se sentia moderno quando dirigia numa cidade feito São Paulo, era uma sensação diferente, de adequação ao tempo e às manifestações dele provenientes. Ele gostava da sofisticação e somente a capital paulista, no Brasil, lhe proporcionava a sensação de civilidade e sofisticação. Foram jantar num pequeno restaurante, no Bexiga, e riram muito; Débora resplandecia e como estava acostumada a dormir tarde, puderam apreciar a movimentação, com gosto e despreocupadamente.

   O ato

O pedófilo-virtual se preparou para executar seu plano sábado à noite; tudo indicava que seria um sucesso, as duas jamais poderiam imaginar o que as esperava e a namorada-vítima jurava que havia tirado a sorte grande, que encontrara - enfim - o homem de sua vida. Chegada a hora, Xavier, excitado, colocou dormonid na bebida dela, numa dosagem para fazê-la dormir por uma eternidade; no suco da menina, colocou uma dosagem mínima, o suficiente para não oferecer resistência e também para não se lembrar dos fatos. Estavam no restaurante do hotel e depois iriam a uma peça de teatro para crianças; o iminente-pedófilo-em-ato derrubou vinho, de propósito, em sua calça e precisaram retornar ao quarto.
Ele quis tomar outro banho para não ficar cheirando a bebida e, quando saiu do banheiro, a namorada-vítima dormia; Débora estava sonolenta, debruçada no colo da mãe. O gerente mal se conteve, quis iniciar imediatamente a tão esperada melhor parte do seu plano, a execução-final. A gana das necessidades específicas arfava, seria implacável, faria a saciedade bater no 10.0 e pedir bis; faria daquela noite um momento inesquecível, literário, poético, absoluto, desregrado, supremo. Xavier estremeceu, a força em seu corpo era descomunal, músculos retesados que podiam erigir o mundo; sentia que valia a pena ter vivido tanto tempo para saborear aquele instante, então despiu-se, colocou a namorada-vítima deitada no chão do banheiro, se masturbou e gozou na sua cara. Eram as preliminares, quando acordasse, a mulher-iludida sentiria o rosto colado e - de reflexo - olharia no espelho e veria a pele levemente retorcida, o gerente duvidava que esqueceria aquela imagem.
Voltou-se, caminhou em direção à esplendida menina; despiu-a, ajeitou-a na cama, estava radiante e então sentiu o peito arfar, precisava de ar, abriu a janela, contemplou a cidade do alto, estava no décimo quarto andar, via de cima, tudo e todos. Uma lua minguante mais distante dava um tom melancólico à noite, tudo era poesia, tudo era plenitude, tudo seria prazer; masturbou-se novamente e rajadas de esperma caíram sobre a cidade moderna e sofisticada. Voltou-se para a menininha, ela movera a cabeça para a direita, ele se aproximou, sentou-se ao seu lado, ajeitou os cabelos perfumados e sedosos, inclinou-se, beijou seu corpinho e a chamou de Letícia.
Nesse instante, o pai-perfeito deu um salto para trás, ficou a meio caminho entre a cama e a janela; por mais que tentasse não conseguia dizer o nome da garotinha, vinha para seus lábios – de forma relutante - o nome de sua filha, era isso, nada mais nada menos, não tinha escolha. Aturdido, não conseguiria fazer tudo o que pretendia chamando aquela criança pelo nome de Letícia, era a ela que estaria fazendo; horrorizado, não conseguiria manter as linhas paralelas, seria o fim e o começo, seria a criação e a danação da criação, seria o que não tem nome, não-seria em forma de ser.
Xavier estava a meio caminho suspenso por uma gélida mescla de tempo; sua alma bradava por saciedade, seu amor pelos filhos bradava por recusa, o sagrado lutava contra a destruição. Olhou a sua volta, quis telefonar para as crianças, sua alma começou a girar, começou a esmurrar a última resistência, isso ela não permitiria que fizesse. Havia chegado a hora, Xavier, seu destino o espera, que se cumpra. O pai-perfeito fez um movimento em direção à cama, pegou impulso, deu meia volta, alcançou a janela e saltou; enquanto caía, rezava baixinho: “Letícia e Guilherme, eu os amo para todo o sempre. Amém”.