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Fernando Luiz Cipriano é psicólogo. Ele possui formação em Filosofia pelo Seminário Santo Antônio (Juiz de Fora/MG), é graduado em Psicologia pela Universidade de São Paulo/SP, onde também obteve os títulos de Mestre em Psicologia Social e Doutor em Psicologia Social. Atualmente é Professor Titular de Ética Profissional da Universidade Paulista e supervisor de Estágio em Plantão Psicológico da Universidade Paulista. Psicoterapeuta de intensa atividade clínica, demonstra interesse por temas relacionados à prática clínica, à modernidade e seus desafios, à psicanálise, à identidade sexual humana, à fenomenologia, às questões morais e éticas entre outros. É autor de Matriz Terapêutica e os equívocos da prática clínica em psicologia, Annablume, 2007 e A Mulher lagarto e Outras histórias, Annablume, 2010

terça-feira, 10 de janeiro de 2012

O ACORRENTADO

 
-         Eles, a família



            O dia mal começara e ele já estava a postos. Viera caminhando, como sempre o fazia e, ao atravessar os portões do cemitério, sentia uma paz familiar, como se visitasse um parente antigo, muito querido. Podia parecer estranho, ele não compreendia, mas o cemitério o acalmava e lhe proporcionava uma alegria jovial; justamente ali, entre as árvores retorcidas e antigas, diante de um Anjo ou Santo, Seu Apolinário relaxava e até refletia, construindo explicações.
         Há trinta e cinco anos, repetia essa rotina de trabalho entre os mortos e aprendera a construir, nesse ambiente, raros momentos de felicidade tranqüila, sem incômodos externos. Cercado por muros brancos e altos, o homem magro e de pele queimada-de-trabalhar-no-sol podia não falar, executar tarefas, cuidar das coisas, remexer a terra e esperar, com resignada sabedoria, que uma importante parcela do mundo viesse visitá-lo. A visitação tão singular e inevitável daqueles que se despedem dos que amam era, talvez, o único momento em que comungava, com o resto do mundo, a mesma percepção, e sentia que concordava, então, com o que faziam.
No entanto, existia também em seus afazeres uma condição-evento de satisfação explosiva, de participação auto-consentida, de pura revelação: era quando acontecia a exumação de um corpo. Seu Apolinário, de auxiliar eficiente e parte quase-invisível de um ritual revestido de tristeza e de dor, transformava-se no mensageiro de boas novas executando, com destreza, todos os procedimentos necessários. O coveiro concentrava-se tanto e de tal forma que chegava a salivar de contentamento quando seus olhos castanho-escuros acompanhavam os detalhes do perito que mexia nos pedaços de corpos em decomposição.

  E Seu Apolinário reconhecia que quanto mais apodrecido e mal cheiroso era o pedaço de carne à vista, maior prazer e mais vontade de vibrar sentia e, então, automaticamente, mais força era produzida em sua alma cansada. Ele jamais havia falado disso com alguém, sequer se detinha em pensamentos sobre o estranho deleite diante da deliciosa imagem de uma carne escura e desfiada da mão humana, por exemplo. E guardava para si essas idéias esquisitas, até porque não saberia como delas falar, que palavras evocaria para mostrá-las?
E foi no cemitério-de-sua-tranqüilidade que Seu Apolinário, um dia, refletindo, depois da presença dela, falou para si mesmo, em voz alta, que de esquisitice não compreendia, mas de esquisitice vivia, há muito, desde que seu filho mais novo nascera. E quando pensava nele, no menino sem amigos e retraído que um dia começara a falar palavras incompreensíveis, sentia-se necessariamente culpado, sentia-se visceralmente atingido, sentia-se pai do-que-não-se-explica.
O coveiro, a vida inteira, defendeu, com veemência, que seu filho não era louco. “Como pode ser louco, se não coloca o dedo na tomada?” “Como pode ser louco, se lembra de fatos que realmente aconteceram?” E, repetia, incansavelmente, entre uma sepultura e outra, as mesmas considerações: ele não sabia explicar as atitudes do filho assim como não podia explicar sua paixão por carne humana apodrecida; é claro que, bem no fundo, sentia que se tratava da mesma coisa: fazia parte da vida, não prejudicava ninguém, era assim.
Em relação aos médicos, o homem de pele queimada-de-trabalhar-no-sol nunca entendera bem o que diziam. A explicação oferecida não esclarecia, não convencia, não identificava; nem a orientação de como proceder com os remédios era assimilada e executada. O pai do-que-não-se-explica ouvia as palavras difíceis dos doutores de branco e nada poderia ser mais distante, nada poderia ser tão inútil porque seu amado filho continuava do mesmo jeito, apesar daquele palavrório complicado e vazio.
“Dessa vez, no entanto, era diferente”, pensou, enquanto contemplava uma beirada de sepultura. Ela falava e as palavras ganhavam vida, ficando iluminadas, indicando algo que depois, toda sua família nomeou de esperança. A moça tinha olhos azuis de tonalidade escura e uma paciência que Seu Apolinário admirava; de todos os que resolveram ajudar, essa psicóloga era a mais jeitosa, simpática mesmo, e estava conseguindo que ele, inclusive, pensasse em coisas nunca pensadas até então.

-         Os intrusos

A última visitação-sem-aviso que receberam fora da Pastoral da Saúde, e acontecia sempre: um grupo de pessoas resolvia que deveria averiguar as condições de tratamento do seu filho, para no final, declarar que precisavam buscar “orientação adequada”. E Seu Apolinário, dessa vez, desatou a rir: riu, riu, riu. As devotas de Santa Rita se entreolharam, onde estaria a graça? Aquelas caras piedosas entendiam pouco de ser pai do-que-não-se-explica, ele pensava enquanto ria, ria, ria, então, as senhoras ganharam ares sérios e foram se aproximando umas das outras, cautelosamente. Estavam no ponto de iniciar um Pai Nosso, quando Marieta, delicadamente, ofereceu-lhes café. As devotas, aturdidas, resolveram aceitar e acompanharam a dona da casa até a cozinha; o coveiro continuava rindo: “orientação adequada”, “orientação adequada”, “orientação adequada”...
Marieta encarregou-se de finalizar a visita, despedindo-se das senhoras, quinze minutos depois, reafirmando que iriam sim procurar o Serviço que haviam indicado. Seu Apolinário não ria mais, estava imóvel, agachado num canto do quarto escuro. Ele não sabia por que ainda deixavam essas pessoas entrarem, por que deixavam que falassem, por que faziam o que sugeriam. Por quê? Não bastava o filho daquele jeito? Não bastavam as internações? Não bastava a dor pelo-que-não-se-explica?
Talvez fosse por instinto que não rompiam de vez com a visitação externa, talvez considerassem perigoso demais viver sem dar satisfação aos vizinhos, às pessoas da Igreja, aos olhares curiosos e quase sempre levianos dos desconhecidos. E curioso, fora justamente a última visitação que fez com que conhecessem a moça que agora os ajudava de verdade. Esta sim resolvera estar com eles sem grandes ensinamentos, sem muito palavrório, vendo de perto e com tempo, o que acontecia naquela casa e em suas vidas.

-         O irmão

Ele estava consertando o freio da moto em frente ao bar quando seu pai, com aquele jeito lento e cadenciado, sentou-se numa cadeira e disse que tinham falado com uma psicóloga que queria conhecer o caçula. Igor tirou os óculos de lentes grossas e os limpou, depois olhou a rua sem movimento, então falou: “o que o senhor achou dela?” “Gostei, é a primeira vez que gosto realmente dessa gente”. “O que ela tem de diferente, pai?” “Eu não sei, filho; confio nela, apenas”. Igor, desde cedo, aprendera a acreditar nas percepções de Seu Apolinário e sentiu que a moça-diferente, talvez pudesse esclarecer sobre o estado de seu irmão.
Ele, apesar de sofrer com a situação, queria saber do que se tratava. Igor queria um motivo, uma razão, um sentido. É que deveria haver um sentido, como não? Tudo deve ter um sentido nessa vida; as coisas têm explicação, causas, um começo. E se algo foi feito, não poderia ser desfeito? Que tipo de coisa não se desfaz? O rapaz de 26 anos, segurança, dono de uma moto e irmão mais velho de Arthur, também vivia imerso na esquisitice, mas aspirava algum tipo de clareza, de certeza, de consolo. Em suas intermináveis noites em que chorava silenciosamente até adormecer de exaustão, definia a vida de sua família como “viver com o que não tem consolo”.
A primeira vez em que aconteceu fora tão impressionante que sabia que nada do que pudesse viver atingiria tanto sua alma, suas crenças, sua alegria. Arthur completara vinte anos, e vinha se comportando de forma um tanto diferente: estava agitado, assustava-se com facilidade e fazia umas caretas sincronizadas que mais pareciam um tique nervoso. Seu Apolinário e D. Marieta ficaram preocupados; o menino-retraído sempre se comportara de um jeito pouco comum, mas daquela vez havia um excesso, uma tensão cumulativa, silêncios hostis; estavam de sobreaviso, portanto.
               Igor não foi trabalhar naquele dia exatamente para vigiar o irmão, e os dois estavam atendendo as pessoas no bar quando Arthur soltou um grito que mais parecia um urro de animal. Os clientes saíram às pressas enquanto o moço começava a quebrar tudo: Arthur jogou cadeiras e mesas em diversas direções e, pegando um caco de vidro, passou-o em seu braço, gargalhando, quando viu o sangue escorrer; depois lambuzou a mão no sangue, passando-a no cabelo e arrancou a camisa, rasgando-a de cima abaixo. Igor, até esse instante, não esboçara qualquer reação, ficando estático, boquiaberto, tremendo.
Ele reagiu somente quando seu irmão se abaixou, pegou um prego, o engoliu e, em seguida, olhou para o molho de chaves em cima do balcão; o motoqueiro pressentiu que as chaves teriam o mesmo fim e, num segundo, se atirou sobre Arthur conseguindo impedir que as alcançassem. Depois lutaram, levou socos e pontapés, tentava imobilizar o Furioso, pedindo ajuda para o aglomerado de gente que se formara em frente ao bar. Os urros de Arthur não cessaram e, cada vez que uma pessoa tentava se aproximar, ele urrava com gosto e o “destemido” afastava-se, apavorado. Igor, no começo, sentiu pena do irmão e seus socos eram mais para defender-se do que para atingi-lo; com isso apanhou muito, começou a sangrar e temeu que Arthur pudesse derrubá-lo e ganhar a rua, quando o pior aconteceria.
Então resolveu que não havia saída: tinha que bater, tinha que machucar, tinha que derrubar: e a luta foi feroz, horrível mesmo de se ver, imaginava, porque tornou-se de vida ou morte. O bar veio abaixo, o aglomerado avolumou-se e o sangue, misturado com os urros, denunciava o extremo de algo ruim, sem o menor controle. O irmão mais velho, de um salto, acertou, com um pedaço de uma madeira grossa, uma cacetada bem na testa de Arthur, que cambaleou e caiu, permanecendo inerte por alguns segundos. Foi o tempo que Igor precisou para imobilizá-lo com uma corda; e nesse exato instante, Seu Apolinário chegou.
O velho olhou para o bar, olhou para os filhos no chão, e voltando-se para o aglomerado disse: “alguém chame uma ambulância e alguém venha ajudar aqui”. As pessoas mexeram-se, as palavras do pai de Arthur devolveram-lhes o senso prático. Dois vizinhos, imediatamente, prontificaram-se a auxiliar Igor na tentativa de imobilizar o irmão, que gemia ensangüentado no chão. Conseguiram mais cordas e ataram os pés e as mãos do Furioso, depois ataram os braços no corpo e viram, enfim, que se acalmava ficando inerte numa única posição.
Igor estava abraçado ao irmão, pois, queria amortecer qualquer tentativa dele de bater a cabeça no chão. Os dois permaneceram algum tempo daquele jeito e ninguém no bar ou fora dele falou o que quer que fosse. O medo, junto ao cheiro de sangue e suor, somado à perplexidade coletiva, produziu um silêncio que o dono da moto jamais esqueceu. Depois, um som de sirene foi se intensificando até que homens de branco entraram no bar e conduziram a situação daí por diante.

- O destino-ação

Ele, quando acordou, estava no hospital e a primeira pessoa que viu foi sua mãe. D. Marieta estava ao seu lado e via-se que tinha chorado. Ao perceber que o filho recobrara os sentidos, abraçou-o dizendo que estava tudo bem. “E o Arthur? Como está? Onde está?” “E o prego que engoliu, contaram para o médico?” “Está internado, filho, num hospital psiquiátrico; o seu pai está com ele.” “Hospital psiquiátrico, mãe?” “Mas, por quê?” “Os médicos disseram que ele precisa de tratamento, está doente, com esquizofrenia.”
“Esquizo... o quê?” “Esquizofrenia, será que é isso? Eu pedi para escreverem aqui, eu sabia que você ia perguntar.” D. Marieta tirou um pequeno papel da bolsa e mostrou ao filho. Era isso mesmo, lá estava escrito: esquizofrenia. “O que é isso, mãe?” “Eu não sei, disseram que é uma doença em que a pessoa perde o juízo”. “Estão dizendo que o meu irmão é louco?” Perguntou Igor com uma voz que mais parecia um gemido. A dor que sentiu ao pronunciar a palavra “louco” fez sua alma encolher. Uma pressão veio de baixo para cima e sua alma foi lentamente pressionada até ficar retorcida. Igor fechou os olhos, apertou a mão de sua mãe, vendo seu destino traçado: daí por diante, o segurança-folguista, seria dono de uma alma retorcida, inconsolável.

         - O primeiro encontro

         Seu Apolinário e D. Marieta arrumaram-se para buscar “orientação adequada” no lugar em que as devotas indicaram. Era uma sexta-feira, de manhã, e ele se arrumou para a ocasião vestindo sua melhor roupa: escolheu uma calça social cinza, uma camisa azul marinho bem passada, e antigos sapatos pretos, comprados há cerca de dez anos, para o casamento da filha.
E quando saíam, ao olhar para sua mulher, verificou que vestia roupas do dia-a-dia e não compreendeu. O coveiro não quis comentar porque sabia que Marieta, no fundo, odiava tanto quanto ele essas visitas em que determinavam o que teriam que fazer. Iriam aproveitar a saída para comprar um liquidificador e debater sobre outras coisas enquanto caminhavam até a Clínica; os dois gostavam particularmente de andar porque apreciavam a movimentação do mundo que lhes fornecia estímulos, novidades e cores vivas.
O encontro foi surpreendentemente “simpático”, ele definiu depois, surpreso. A moça fez as perguntas que todos faziam, mas ouvia com atenção concentrada, demonstrando um ar de simplicidade que despertou a curiosidade de Seu Apolinário. Ele nunca compreendeu o interesse dessa gente pelo seu menino. O que tinham a ver com isso? O que uma moça como aquela queria? O pai do-que-não-se-explica sabia que apenas pais e filhos deveriam se interessar uns pelos outros; “apenas a família deve se interessar por ela mesma, sem família ninguém vive”, repetia em pensamento.
Ao sentar-se diante dela e ao verificar seu ar de receptividade, Seu Apolinário perguntou-se, pela primeira vez, se o seu caçula representava uma ameaça para as pessoas. Será que é por isso? Será que têm medo dele? No entanto, ao repassar os últimos seis anos, constatou que não agredira nenhum estranho: o seu menino-retraído somente batia neles, nas pessoas da família. Isso, Seu Apolinário não explicava, Arthur agredia as pessoas de quem gostava: era desse jeito, nunca batera em alguém que não amasse.
O que também foi curioso nesse encontro é que, durante a conversação, ao falar de Maria Alice, percebeu que sua filha não participava do que acontecera com Arthur. Ela se casara, dez anos atrás, e tivera um filho e vivia outra vida; estava, portanto, isenta do convívio com as dificuldades do antigo lar. Ao falar que a sua única filha-mulher escapara do-que-não-se-explica, contou que ela apanhava do marido e que tentava se separar sem obter sucesso porque sempre retrocedia. Ao concluir a frase, desatou a rir: riu, riu, riu.
Então, D. Marieta teve que intervir. Ela tomou a palavra, levantou-se e, com gestos exagerados, explicou que a filha brigava com o marido e alojava-se em sua casa com o neto, de oito anos. Acolhida, Maria Alice jurava que não queria mais saber do “cafajeste”, que iria refazer sua vida, que arrumaria emprego. Não passava uma semana e reatava, levando o filho consigo. Não passava dois meses e reaparecia, toda machucada, roxa, com alguns pertences e pouca roupa. Era mesmo interessante porque a permanência dela nunca coincidia com a permanência de Arthur entre eles.
E da última vez em que se instalou, Igor lhe deu um ultimato: se reatasse, deixaria Gustavo morando com eles; o menino não agüentava mais as brigas dos pais, por esse motivo pedia para ficar. Maria Alice deu de ombros e disse que isso não aconteceria porque preferia morrer a ter que se deitar com o “cafajeste”, mais uma vez. Ela voltou, Gustavo não. E o menino adaptou-se tão bem ao funcionamento da casa que, na primeira crise de Arthur em que estava presente, voou para cima dele para ajudar Igor a imobilizá-lo: era assim, os homens de sua família tinham uma função diante da agressividade do Furioso: deveriam imobilizá-lo.
Seu Apolinário ainda ria quando ela perguntou o que achavam que seu filho mais novo tinha. Era a primeira vez que alguém entrava nesses pormenores: “eu acho que é manha”, respondeu entusiasmado. E repetia, “manha, doutora. Quando ele está no hospital, come com as próprias mãos e toma banho sozinho. Lá em casa, temos que dar comida na boca e temos que dar banho, também. Por que faz assim? Ele é esperto, doutora. O meu menino-retraído é esperto, sabe das coisas.”
Nessa hora, D. Marieta começou a falar alto, dizendo frases incompletas e retomando os gestos exagerados. O marido não se incomodou e continuou sua argumentação; ela levantou-se, insistiu no assunto sobre Maria Alice, depois demonstrou preocupação com Igor, depois disse que, em sua casa, sempre fizeram reuniões para discutir os problemas e Arthur permanecia isolado, sem participar. Acontecera algo também quando teve que ir para o Exército: foi dispensado, mas voltou assustado e não disse o que ocorrera. A partir dessa informação, Seu Apolinário acompanhou-a nos assuntos e os dois se perderam em datas, confundindo as coisas.
Cinco minutos depois da confusão instalada, emudeceram quando ela declarou que gostaria de conhecer Arthur. “Atualmente, nosso menino está internado, doutora. E daqui a quinze dias, receberá alta.” Seu Apolinário falou, com emoção na voz. A moça queria vê-lo tanto no hospital quanto em casa, se fosse possível. Ela pedia, com educação. Foi então que o pai do-que-não-se-explica sentiu vontade de contar, de simplesmente falar: “a doutora sabia que nós o amarramos em casa, quando fica nervoso? Nós o prendemos numa corrente.”
A voz de Seu Apolinário traduzia, através de um tom recém-inaugurado, uma confiança nunca estabelecida: o coveiro jamais havia contado para alguém o que faziam em casa. Todos sabiam, ou porque viram ou porque alguém dissera, mas não de sua boca. O mundo sabia por que não conseguia dispensar o mundo, pois se dependesse de suas palavras, dispensaria não dizendo. Aquilo só cabia a eles, às pessoas da família.
        
-         A internação

Igor tirou quinze dias de licença para se recuperar da luta com o irmão: três costelas quebradas, um dente quebrado, muitos ferimentos e um adormecimento pelo corpo. Ele preferia não ter que ficar sem trabalhar porque teria motivos para se distrair e assim que conseguiu andar, foi visitar o irmão, acompanhado de Seu Apolinário. Pegou sua moto, acomodou seu pai, verificou se o capacete estava bem ajustado, colocou o seu e partiram.
Levaram bolo, um pote de doces e alguns salgados; o vigilante não sabia o que encontraria, e temia a realidade com a qual pudesse se deparar. O hospital era longe, e isso, de certo modo, o preparou: nas curvas da rodovia, ele ganhava tempo e coragem; o irmão do Furioso, no trânsito, além de coragem, ganhava dignidade. Os dois foram recebidos com cordialidade por uma enfermeira, que os conduziu a determinada ala do hospital, a masculina, do lado direito de quem entrava. Esta ala era composta por dois quartos com quatro camas cada um, uma pequena sala de enfermaria, um corredor com uma mesa e oito cadeiras. Em cima da mesa, uma televisão.
Igor precisou olhar para Seu Apolinário para prosseguir. Logo na entrada, havia uma pequena varanda, com dois bancos de cimento e uma pequena área para tomar sol. Eles entraram no primeiro quarto: das quatro camas, três estavam ocupadas com homens dormindo, que tinham a cabeça coberta por mantas de cor cinza. Seu Apolinário chamou baixinho, ninguém se mexeu. Ele repetiu: “Arthur, meu filho”. Nenhum movimento. Então, Igor disse numa voz forte: “Arthur, seu malandro. Estamos aqui.”
Arthur descobriu a cabeça, sentou-se na cama, deu um sorriso e exclamou: “Meu pai veio!” Estava mais magro, é certo, mas nada que justificasse aquilo tudo, pensara Igor. O seu coração encheu-se de alegria e deixou que o pai se aproximasse primeiro; o mais novo segurou, com força, a mão de Seu Apolinário e falou coisas incompreensíveis. Parecia que via o que não viam, e falava de um mundo estranho, de perseguições e mentiras. O motoqueiro estacou, aquele não podia ser o seu querido irmão. Não podia.
Depois, o Furioso deu para falar sobre sexo, e mostrou o pinto duro para o pai, que não sabia o que fazer. Depois, assim, como num passe de mágica, retornou para esse mundo e perguntou sobre D. Marieta, sobre a moto e quis saber se o bar havia voltado a funcionar. Igor ficou aturdido. O que significava tudo aquilo? Será que seu irmão fingia, zoava com eles, tirava um “barato”? No entanto, havia uma falta de brilho no olhar que o preocupou, será que estava mesmo doente? Será que aquilo era uma prova da esquizofrenia? Nisso, a enfermeira entrou, conversou um pouco e explicou que estava reagindo bem ao tratamento; provavelmente receberia alta para continuar se tratando em casa.
“Isso tem cura?” Perguntou Seu Apolinário. A mulher ajeitou o punho da roupa, meneou a cabeça e respondeu: “temo que não, mas conversem com o médico, ele explica melhor.” Saiu. Tentaram falar com o médico, tiveram que esperar, estava noutra ala. Por um instante pensaram em ir para casa, não queriam saber de mais nada. No entanto, Igor lembrou-se do prego que o irmão engolira e queria saber o que fora feito em relação a isso. Temia que algo grave pudesse acontecer. “O prego, pai; o prego.”
 Meia hora depois, o médico acabou por chamá-los.“O senhor é o pai do Arthur? Sentem-se aqui, por favor”. “Em que posso ajudá-los?” Os dois permaneceram em silêncio, o médico aguardou. Seu Apolinário olhou para o chão, Igor olhou para o pai. “Foi a primeira vez que aconteceu?” Fizeram que sim com a cabeça. “O nosso diagnóstico é esquizofrenia. Uma doença em que a pessoa vive num mundo diferente do nosso, vê o que não vemos, ouve vozes e pode se tornar agressivo. Precisa tomar remédio, precisa de atenção especial e alguns médicos indicam psicoterapia, se o paciente tiver condições de fazer.” O silêncio permanecia. “E o prego, doutor?” Perguntou Igor. “Ah, o prego! Vou mostrar.” O médico dirigiu-se até um armário de ferro, abriu uma de suas partes e retirou um pacote. “Vejam.”
Havia cerca de uma dúzia de radiografias. Elas mostravam a trajetória do prego dentro de Arthur. A fisionomia dos dois ficou pesada, Seu Apolinário disse: “Santo Deus!” Igor tossiu. “Por mais estranho que possa parecer, o prego está descendo e nós estamos aguardando para ver o que acontece. Não causou nenhum problema até agora. Eu já vi muita coisa inexplicável, querem saber? Talvez esse prego saia naturalmente.” Os dois olharam espantados para o médico. “Será?” Pronunciou Igor. “Ele só terá alta depois que o prego não estiver dentro dele, isso eu garanto a vocês.”
O pai e o irmão não quiseram continuar a conversa. Agradeceram ao médico e saíram. Estavam aliviados, parecia que as notícias eram boas. Parecia. O que desejavam era levar Arthur, queriam dar-lhe carinho porque carinho é o melhor remédio que se pode ter. Pai e filho estavam convencidos de que tudo não passaria de uma fase, de um momento difícil, quem não os tem? Ao pilotar sua moto de volta para casa, Igor ousou sorrir depois de tantos dias; como era bom ter esperança...
- O retorno

         Sessenta dias depois do primeiro surto, Arthur estava de volta. O irmão o trouxera de moto e alguns vizinhos formavam um pequeno aglomerado em frente ao bar: quem não estaria ansioso para colocar os olhos no autor de uma proeza inexplicável? É claro que vieram ostentando boas intenções e ares solidários, mas no fundo, Seu Apolinário sabia que se tratava de curiosos-indiferentes. Eram os outros, a não-família, os de fora.
         D. Marieta estava ansiosa, fizera um almoço caprichado e vestia uma roupa bonita. Ela pediu que Seu Apolinário fechasse o bar e os dois não se cansavam de consultar o relógio. Os irmãos chegaram, enfim. Igor tirou o capacete, via-se orgulho em seu olhar: tudo certo, nenhum transtorno, tranqüilidade à vista. Ele ajudou Arthur a descer, encarregou-se da sua mochila e comoveu-se com os abraços e os beijos que seu irmão recebia dos pais. Os outros se aproximaram, olharam bem, desejaram saúde e paz e partiram. Enfim, a solidão em família.
         Assim que entrou em casa, o primogênito pediu a todos um minuto de atenção. Abriu a mochila do irmão e retirou um pacote amarelo onde estavam as radiografias tiradas no hospital. Em seqüência, uma a uma, foi mostrando a descida do prego, até que... E fez suspense: nada mais havia. O prego fora expelido com as fezes. Os aplausos vieram e trouxeram a alegria. A mãe do Furioso mal podia acreditar: era sorte, muita sorte.
         O almoço delicioso de D. Marieta fez sucesso, Igor falava de muitas coisas e Arthur apenas o ouvia, em silêncio. Era raro que a espontaneidade e a alegria emoldurassem o tom daquela casa, porém, num dia tão especial não poderia ser diferente. Seu Apolinário contou de um enterro no cemitério, em que a mulher e a amante do morto se pegaram de tapa, rolando no chão, rasgando a roupa, berrando palavrões com vontade; todos riram. Ele detalhou a cena de tal modo que até Arthur ria, o almoço chegara ao ponto alto.
         A tranqüilidade durou cinco dias. Eles esqueceram de dar os remédios ao mais novo, que voltou a ficar agitado e a falar palavras sem sentido. Seu Apolinário achou então que era melhor dar-lhe os remédios e deram três tipos de uma vez. No começo, Arthur tomava a medicação sem oferecer resistência, depois começou a cuspir os comprimidos e o clima ficou tenso. Igor teve a idéia de amassá-los e colocá-los no suco. Assim fizeram.
         Duas semanas depois, outro surto. Arthur estava no quarto quando começou a dar socos na janela; machucou a mão, quebrando o vidro e xingou os vizinhos dizendo obscenidades. D. Marieta acudiu e levou um soco na nuca, caindo imobilizada, e ao ver sua mãe estendida, Arthur gritava: “Matei minha mãe!” “Matei minha mãe!” E saltava e batia no peito e ria e transformava o riso em uivo. Depois foi a vez de Seu Apolinário, um soco na boca do estômago e o nocaute. “Matei meu pai!” “Matei meu pai!”
Ao ver os dois estendidos e inertes, o Furioso silenciou e foi para um canto do quarto permanecendo de pé, virado para a parede. Nessa hora, Igor chegou apavorado, vindo do bar e trazendo nas mãos uma corda. Sem pensar, amarrou as mãos e os pés do irmão. Fez um nó perfeito, colocou Arthur sentado na cama e foi socorrer os pais. Correu até a cozinha e trouxe gelo esfregando na nuca e na testa deles. Deu certo, recobraram os sentidos. “Foi só um soco”, Seu Apolinário falou, “nada mais.” “Ele se acalmou?” Perguntou a mãe. “Eu cheguei aqui e o vi encostado na parede, quieto.” E foi assim que descobriram que a imobilidade o acalmava, era a primeira vez que conseguiam interferir no comportamento do Furioso.
         Decidiram que o manteriam amarrado. Assim poderiam controlá-lo melhor. Também decidiram que iriam tirar a janela, vidro no quarto era pior que arma. Foram chamar um farmacêutico, que examinou a mão de Arthur, passando-lhe alguns remédios. Esses remédios foram ministrados com gosto, tinham utilidade e função e a mão ia sarando, sarando, sarando. O farmacêutico viu o moço amarrado e não gostou, falou que era desumano; prometeram que o soltariam.
         Seu Apolinário e Igor tiraram a janela. O quarto ficou escuro. O Furioso permaneceu imóvel por três dias e D. Marieta teve que dar comida em sua boca, caso contrário, não comia. E precisou ainda levar um penico para que seu menino fizesse as necessidades, senão fazia na roupa. E assim foi, dia após dia, semana após semana: Arthur amarrado, num quarto escuro, quieto, sendo alimentado pela mãe.
         Igor era o responsável pelo banho do irmão e, duas vezes por semana, preparava-se para o arriscado trabalho. Levava-o amarrado até o banheiro, desatava o nó dos pés, lavava a parte de baixo primeiro, depois amarrava. Se demonstrasse calma, continuava: desatava o nó das mãos e concluía o serviço. Depois o amarrava novamente e o enxugava. Levava umas três horas executando a tarefa porque conversava com o irmão, sentava-se ao seu lado, no chão do quarto ou na porta do banheiro e puxava uma conversa. Falava sozinho quando Arthur não manifestava qualquer reação e enchia-se de alegria quando o irmão correspondia.
         Assim, de banho em banho, até se esquecia do diagnóstico de esquizofrenia. Havia um jeito de conviver com o caçula, bem ou mal conseguiam. Então, num desses banhos, distraiu-se mais que de costume e Arthur começou a bater a cabeça na parede. O embate reiniciou e o segurança tentou impedir que se machucasse, teve a idéia de colocar o capacete no irmão e se arrastou para alcançá-lo. Nisso, o Furioso pegou um molho de chaves que caíra do bolso direito da calça e o engoliu. Igor soltou um grito, não acreditou no que acabara de presenciar.
         Aturdido e sentindo-se traído, desfechou um soco tão certeiro que o filho mais novo não conseguiu se levantar. D. Marieta chegou assustada, “chame uma ambulância, ele engoliu um molho de chaves, mãe”. A ambulância veio, levou o enfermo, a vizinhança ficou sabendo, Seu Apolinário foi avisado e o motoqueiro entrando em seu quarto, fechou a porta e chorou.
        
- O desconsolo

A doença vencia. Se é que se tratava de uma doença. A esquizofrenia vencia, pensava o prestimoso irmão. E não vencia apenas porque mantinha Arthur aprisionado a um mundo estranho, vencia porque roubava de todos, naquela casa, a esperança de dias melhores. Igor vivia para isso, não tinha namorada, não tinha amigos, não tinha futuro. Tinha apenas a moto e a função de derrubar o Furioso, de neutralizar seus ataques. Tirou os-óculos-fundo-de-garrafa, olhou no espelho e viu um homem bonito. Era bonito, dizia para si. Podia arrumar uma namorada e se casar, sair dali. Mas deixar seus pais sozinhos!? O que fariam com o Furioso? E se algo definitivo acontecesse? Ele não se perdoaria.
Acabou achando graça da situação ao pensar no contato com alguma moça que despertasse seu interesse: “oi, prazer, eu sou irmão do Furioso, quer namorar comigo mesmo assim?” E riu. “Quem quer casar com o irmão do Furioso?” Parecia a Dona Baratinha, repetindo: “quem quer casar com a Dona Baratinha, que tem dinheiro na caixinha?” “Quem quer casar com o irmão do Furioso, que tem uma moto novinha?” E continuou a rir. “Será que nunca seria noivo? E se existisse uma moça disposta a conviver com o Furioso?” Igor gostava dessa idéia, mas sabia que era ilusão, pois nenhuma estranha aceitaria aquele destino. Nenhuma.
Em suas noites insones então, tratou de conhecer a esquizofrenia. Comprou alguns livros e leu sobre o assunto. Logo percebeu que ninguém afirmava com certeza quais eram as causas da doença, isso o irritava. Como pode? Fazem remédios, dão nome, pesquisam e não sabem. É ridículo. São inúteis. Incompetentes. A informação de que há indícios de um componente genético, não o assustou. Não temia a loucura, nem achava que seu irmão fosse louco de verdade. Era diferente apenas: calado, quieto, sem amigos e agora, nervoso. Valentão. Mas Igor era mais valente, e mais forte, e não perdia o juízo.


-         O componente genético

Seu Apolinário, quando ouviu sobre o componente genético, ficou cabreiro. Sempre soube que tinha responsabilidade no que acontecera com seu filho mais novo. “Todo pai sabe disso, não é doutora?” Falou com a moça-receptiva, no dia em que foram visitar Arthur no hospital, e continuou: “eu vou contar para você uma coisa que nunca contei para ninguém. Uma vez, sonhei que estava caindo de um avião e, antes do avião começar a cair, reparei no céu, que estava muito azul. O avião, querendo cair, voava então sobre uma água suja, barrenta e mortal; e se caísse nessa água, eu poderia morrer. Eu nunca andei de avião, mas sabia que era a mesma sensação: a sensação real de uma queda de avião”.
“Eu me senti muito mal e, quando acordei, tinha perdido a memória. Eu não me lembrava mais da senha do banco, nem das datas de aniversário dos meus filhos, nem de qualquer outra data. Penso que foi minha pressão que subiu possibilitando o sonho e a perda de memória. Tomei o remédio para a pressão e me afastei de todos para não perceberem que havia perdido o juízo. Aos poucos, fui lembrando das coisas, algumas. Mas, olha, nunca mais voltei a ser o mesmo. Escondi isso das pessoas, porque não gostaria que pensassem que temos dois doidos em casa, mas, foi isso que aconteceu com o meu menino, doutora. Foi isso. Só que ele não mais se recuperou.”


         - Relacionamentos Interpessoais Desordenados
        
         Quando Igor passou do componente genético para os relacionamentos pessoais desordenados, não sentiu apenas raiva do que lia, sentiu desprezo. Ele demorou para compreender, depois concluiu que estavam falando dos familiares dos esquizofrênicos: do pai, da mãe, dos irmãos, enfim, de quem criou e cuidou da pessoa doente. Olhou para sua família e avaliou como viviam: nada demais, muito amor, preocupação; talvez, amor em excesso, um tanto misturado, mas sincero. Isso causa doença? Isso transforma um cara quieto em Furioso? Desde quando a sinceridade do afeto provoca dor e desespero? Ou cria um mundo à parte?
         E da raiva impotente, sentiu uma dor aguda, gemeu. Chorou, chorou, chorou. O pior era não saber o que fazer, era não conseguir as pistas, permanecendo na ausência, eternamente refém do desconhecido. Enquanto remoía a dor e o ódio, lembrou-se de algo curioso: sua mãe dissera, numa época, que Arthur, depois dos dois anos de idade, não mais chorou. Era verdade sim, não se lembrava de seu irmão chorando. O que significava essa informação? Toda criança chora, é normal, e por que o Furioso não chorava?
         Seu irmão também nunca adoecera. Disso, D. Marieta se gabava, pois nunca precisou levá-lo ao médico. Ele não gostava de estudar, é certo, não conseguia concentrar-se nos estudos, parando, portanto, na sétima série; tanto que criaram o bar, na frente de casa, para que tivesse uma ocupação, para que não ficasse ocioso. Seu Apolinário temia que seus filhos se envolvessem com drogas, e faria qualquer sacrifício para livrá-los desse caminho. De namorada ou do interesse por alguma menina, o Furioso nunca falara. Das reuniões de família não participava, ficava sempre em um canto da cozinha, apenas ouvindo. Amigos não tinha, era sozinho. Isso causa esquizofrenia? Isso indica esquizofrenia? E como é que se desfaz?
         Igor lia e relia o livro sobre esquizofrenia e parecia que falavam de tudo menos de suas vidas. Outra informação difícil de ser compreendida era como os medicamentos podiam alterar o comportamento de alguém; seu irmão tomara várias vezes e de nada resolvera. E o nome dos remédios? Nunca vira coisa tão estapafúrdia, alguns eram impronunciáveis; Seu Apolinário referia-se a eles pela cor. Depois, veio a parte da psicoterapia, mas o motoqueiro não quis nem perder tempo porque sabia que seu irmão estava longe de fazer uma. Orientação familiar não tiveram; a quem deveriam procurar? Médico não é bom para isso... “Quer saber? Vamos dar tempo ao tempo, quem sabe algo se esclarece!?”
        
-         As internações

A segunda internação causou revolta na família de Seu Apolinário porque o menino-retraído foi tratado como um “bicho”. Ele foi amarrado numa cama, permanecendo assim, dois meses seguidos; para piorar, recusou-se a comer e emagreceu, ficando pele e osso. O molho de chaves, no entanto, foi expelido como o prego, naturalmente. A situação tornou-se crítica porque desejavam que o caçula voltasse para casa, porém, começavam a compreender que as crises não seriam passageiras, e a internação, no que afligia, aliviava, assim como também o retorno do Furioso.
O que aconteceu, com o passar dos anos, foi que Arthur percorreu todos os hospitais psiquiátricos da região: em alguns, era bem tratado, em outros, não. E sua família lutava para que permanecesse naqueles que melhor conduziam o tratamento, e nem sempre conseguiam.  Às vezes, ele fugia e Igor precisava procurá-lo de moto; invariavelmente o encontrava e o levava para casa. Outras vezes, o hospital dava alta porque vencia o prazo de reclusão; alguns passaram, inclusive, a não recebê-lo depois da segunda estadia.
E foi no intervalo entre a quarta e a quinta internação, que Seu Apolinário, conversando com Igor, resolveu acorrentá-lo: o Furioso, se soltando dos nós, quebrara a cama, e acertara D. Marieta nas costas de tal forma que a mulher foi internada durante dez dias, no hospital municipal. Não dava para ficar sem os dois em casa, pensou o patriarca, ele não suportaria: então, depois que se certificou de que a mulher estava fora de perigo, planejou, com o filho, imobilizar o Furioso sem lhe dar a chance de escapar.
Eles furaram a parede do quarto, na parte de baixo, e atravessaram um ferro; depois soldaram do lado de fora e verificaram que estava bastante firme. Repetiram a operação, na parte de dentro, soldando uma grossa corrente de oitenta centímetros, com a qual amarrariam o braço de Arthur. Fizeram o mesmo, mais ao fundo, numa distância que desse para acorrentá-lo numa posição vertical. O Furioso ficaria praticamente dependurado.
Arthur, porque vira a mãe estendida no chão, permanecia quieto num canto, não oferecendo nenhuma resistência à nova forma de aprisionamento. Ele ficou suspenso e parecia não se incomodar. “Isso deve doer depois de algumas horas; se ficar ruim para ele, tiramos. Certo, pai?” Perguntara Igor, com peso no coração. “Tiramos sim, não se preocupe.” E não tiraram. Aquela era a forma mais segura que puderam encontrar. A janela já havia sido fechada, retiraram o colchão e mantiveram o penico; nenhum vizinho corria o risco de ver o que acontecia e a tranqüilidade voltara, enfim, à casa do final da vila.
E quando alguém perguntava pelo menino-retraído, muitas vezes, respondiam que estava internado em outra cidade, um tanto distante: Santo André, por exemplo. E comentavam que estava bem, que ganhara peso e que logo estaria entre eles. Assim, o tempo passou e o Furioso ganhou uma nova condição na família: a de acorrentado.

- Ela, definitivamente

         Igor decidiu que precisava conhecê-la antes que viesse a sua casa. O que a psicóloga encontraria seria novidade suficiente, devia, portanto, apresentar-se, mostrando o restante da família. Assim, telefonou para a Clínica e marcou uma sessão, resolvendo também que levaria o Gustavo. Era a primeira vez que tomava a iniciativa para conversar com alguém sobre suas vidas e nem sabia mais o que desejava: seis anos se passaram e acostumara-se com o não-consolo, aceitara seu destino e, em períodos breves, até sentia um tênue sopro de felicidade.
         Em sua casa, os cuidados com o Acorrentado, em nada diferiam dos cuidados com um animal que tinham que manter entre eles: o quarto escuro, as correntes, o penico e um “bicho”, calmo ou Furioso. Religiosamente, ao meio-dia, D. Marieta empurrava a porta bem devagar e sondava o ambiente, depois entrava. Se estivesse calmo, avançava e, de joelhos, lhe dava comida na boca. Se estivesse agitado, colocava a comida o mais próximo e saía. Às vezes, o Furioso uivava, às vezes, grunhia. Quando conseguia reunir coragem, a mãe olhava para os ferimentos do filho causados pelas correntes e chorava escondido, depois pedia para Igor passar algum remédio.
         Gustavo, que já morava com eles, vez por outra, se oferecia para alimentar o caçula e D. Marieta sentia gratidão. Ela então permanecia sentada em sua cozinha, olhando para as panelas e olhando através delas. Não pensava, vagava numa ausência indefinida, neutra, branco-leitosa. Se pensasse, perderia o juízo; se pensasse, morreria; se pensasse, desistiria. Depois o neto aproximava-se, mostrava o prato vazio e carinhosamente abraçava a avó: os fios brancos do cabelo da avó misturavam-se aos fios pretos do cabelo do neto: a mesma cozinha, as mesmas panelas, o mesmo silêncio, a mesma dor. Apenas um destino, Meu Deus, somente Um.
         Foi D.Marieta quem pediu para que não prendessem os pés do menino-retraído. E de tanto falar e de tanto resmungar, conseguiu. É claro que corriam mais riscos porque Arthur ganhava mobilidade e chegou a escapar batendo em todos com a corrente presa no braço. Deu correntada em quem se aproximava, entrava e saía dos cômodos batendo com a corrente nas paredes, nos móveis, no que ainda pudesse ser destruído. Dessa vez, engoliu um “naco” de massa de reboco com pedaços de vidro, era da beirada da janela da cozinha; precisou ser internado.
        

         - O encontro

         Ao ouvir seu nome, levantou-se e apertou a mão da moça. Mostrou o sobrinho, apontando para o menino que permanecera sentado, acompanhou-a e sentou-se. Ela era aquilo mesmo que seu pai dissera: simpática, jeitosa, receptiva. De dentes muito brancos também. Era magra, estilo mignon, não muito nova, de olhos azul-escuro como os seus. Jurava que era. E conversaram, como se fosse a primeira vez, sobre o destino incomum da família do Furioso. Igor não sabe dizer o que sentiu, mas algo diferente vinha da moça e, reciprocamente, algo diferente era produzido em seu peito. Havia uma reciprocidade, um ponto comum, uma possibilidade de permanência.
         E desatou a falar, e tirou os óculos, quis parecer jovem, bonito. Falou da moto, de sua paixão pela velocidade, falou de si; esqueceu, por alguns minutos, que era irmão de um cara que permanecia acorrentado num quarto escuro, numa casa que ficava no final de uma vila. Assustou-se, retomou a obrigação de irmão, pronunciou a palavra esquizofrenia e pediu para compreender o que significava tudo aquilo. Quase chorou e não se perdoaria se tivesse derramado lágrimas na frente da moça, no primeiro encontro.
         Saiu radiante, como se pisasse em nuvens; seria capaz de dispensar a moto e iria a pé, se não fosse distante; depois pensou que, mesmo longe, iria caminhando, se não estivesse com Gustavo. “O senhor tinha razão, ela é diferente, pai.” Disse, ao descer da moto, em frente ao bar. Seu Apolinário percebeu a entonação vibrante e teve receio, “cuidado, filho, cuidado.” Pela primeira vez, o segurança-folguista olhou seu pai de frente e ousou discordar dele. Nada disse, mas não via razão para “tomar cuidado”, cuidado com o quê? Perguntava-se: “com o quê?” E limpava os óculos, “ela pode nos ajudar sim, e muito.”
         Decidiu que se a moça receptiva tivesse realmente a coragem de visitá-los, deveria protegê-la de Arthur. Se o valentão avançasse para cima dela, algo importante se perderia e não estava disposto a perder o que conquistara olhando diretamente para aqueles olhos azuis. E o amigo da Dona Baratinha, percebeu, pela primeira vez, que tinha algo a perder. Foi até seu quarto, tirou o livro sobre esquizofrenia do fundo de uma gaveta e releu: queria ter assunto para falar com a moça e queria, antes de tudo, compreender. “Eu sei que se ela explicar, eu compreenderei, eu sei.” E sentiu esperança-de-futuro, pela primeira vez.

-         A visita

Ela marcou a visita e Igor iria buscá-la. Viria na frente, com sua moto, pois não queria que se perdesse. Chegou cedo, e apesar do calor, vestia um grosso casaco preto de inverno. Achava que ficava bem assim. A moça foi pontual. Cumprimentaram-se e seguiram rumo ao distante bairro na periferia. Acompanhava atentamente os movimentos da psicóloga através de seu retrovisor e não a perdeu de vista, era um bom guia. E ganhou as ruas, e venceu o vento, e sentiu-se forte dentro do casaco preto. Então sorriu. E ninguém reparou nem soube, porque estava de capacete. Sorriu de novo. Olhou para trás e fez sinal, ela compreendeu e devolveu o sinal: o sorriso permanecia, mas a moça não poderia ver.
Foram se aproximando da rua, da casa, do lar do Furioso. Ele estacionou a moto concentrado, não sorria mais. Um menino passou correndo e apontou, gritando: “olha o irmão do biruta!” A moça desligou o carro, ele abriu a porta, “é aqui, indicando a casa que ficava bem em frente.” Seu Apolinário desceu as escadas e veio cumprimentá-la, “vamos, doutora, estão todos lá dentro.” O pai seguiu na frente, apressado, porque Arthur estava sozinho com Marieta e Gustavo. Fizeram o mesmo. O caçula permanecia calmo naqueles dias porque tinha saído do hospital e ainda estava sob o efeito dos remédios.
Todos os esperavam na cozinha, D. Marieta fizera um bolo e café. Arthur andava de um lado para outro, impaciente. Ele conhecera a moça-bonita no hospital e ficava repetindo: “ela veio. Ela veio. A doutora veio.” Gustavo estava em pé na porta e, afastou-se, quando Seu Apolinário apontou na sala. Entraram. Igor dirigiu-se até o irmão, abraçou-o e permaneceu com o braço em seu ombro. Poderia contê-lo, se precisasse; era terno e prático, falava suavemente, mas alterava o tom de voz quando julgava necessário. A moça parecia à vontade, sentou-se e aceitou o café com bolo. Todos comeram. Igor, então, pediu que explicasse o que era a esquizofrenia.
         A psicóloga falou calmamente, enquanto ouviam com atenção; de vez em quando, alguém perguntava ou emitia uma opinião. Falaram sobre o já-falado e ela tentava esclarecer, orientar, aproveitando a oportunidade para tornar possível uma compreensão da doença que permitisse menos sofrimento e alguma qualidade de vida para os envolvidos. O mais importante, reparava Igor, era que compreendia a situação e não os recriminava por acorrentar o Furioso. Nunca acontecera isso, as pessoas reagiam instintivamente ficando horrorizadas com o quarto escuro. Ela não, parecia compreender a não-saída, o desconsolo; parecia solidária com o destino irrevogável de todos os habitantes da casa do final da vila.
         A moça receptiva quis ver o quarto, eles sentiram desconforto; Seu Apolinário foi o primeiro a se recuperar, disse: “a doutora não vai gostar.” Ela insistiu, então arriscaram. Entraram, era escuro, ela deu alguns passos e sentou-se. Fedia; a corrente estava lá, ela pediu para ser acorrentada; Igor hesitou, não podia acreditar. A psicóloga esperou, ele fez; todos ficaram em silêncio. Silêncio. A moça levantou-se e certificou-se que Arthur realmente tinha certa mobilidade; “viu, doutora, ele consegue mover-se”, falou Seu Apolinário, satisfeito.
         Igor pediu para soltá-la, e retornaram para a cozinha. Acomodados, falaram de remédios, e a psicóloga insistiu para que dessem a medicação de forma correta; fez uma tabela, para que não se confundissem. Seu Apolinário contou, comovido, que se sentia decepcionado com o governo, com os médicos e com o sistema de Saúde Pública, em geral. “Eles não sabem nada sobre essa doença, só dizem que sabem”. E continuou: “nunca procuraram compreender a nossa situação, doutora; apenas medicam o Arthur e o devolvem para nós. Não há acompanhamento...” A voz do chefe da casa ficou embargada. Fez-se silêncio. Igor não reconhecia seu pai, mais um pouco e o homem que enterrava os mortos derramaria lágrimas.
         Ninguém da família queria que Seu Apolinário chorasse. Não havia, entre eles, espaço para manifestações individualizadas de sentimentos; não havia entre eles brechas para sofrimentos outros que não o coletivo, não poderia haver. Igor não sabe se a moça percebeu que algo estava para se romper, mas ela impediu falando que Arthur realmente precisava de um acompanhamento psiquiátrico contínuo, com o mesmo médico. A psicóloga não compreendia porque não adotavam esse procedimento, porque não os orientavam, porque não operacionalizavam a solidariedade.
“Indiferença, doutora, indiferença.” Falou Seu Apolinário, mais contido, recomposto. “Indiferença que nós devolvemos com desprezo.” A raiva agora contornava cada palavra do coveiro e ressoava pelas paredes, rebatia nas xícaras, boiava no café. Foi então, que Igor percebeu que, inúmeras vezes, sobreviveu porque apenas odiava. Odiava o mundo, odiava a esquizofrenia, odiava os médicos, odiava a todos os que não pertenciam a sua família. Odiava. A exceção viera por conta da psicóloga que, justamente naquele instante, reunia-se com eles; e parecia que o efeito da presença dela fora o mesmo para o pai, para a mãe, para o irmão e para o sobrinho.
Igor estava tão concentrado em seus pensamentos que não percebeu que o Furioso soltou-se e sumiu, por instantes; foi então que reapareceu com um gatinho na mão, veio resmungando e o colocou no colo da moça, dizendo: “cuida!” O irmão-com-lentes-grossas puxou Arthur para junto de si e zangou-se: “que cuida, o quê! Deixa ela.” Era um dos sete filhotes da gata de Gustavo, estavam para ser doados e não se sabe como não morreram porque o leite da gata havia secado.
         “Cuida”, ele continuou e alterou a voz. O clima ficou tenso, mas logo se dissipou porque a moça receptiva disse que levaria o gatinho consigo. Pediu que Arthur lhe desse um nome. Ele balançou a cabeça e ficou repetindo: “um nome, um nome, um nome...” Como não conseguia, Gustavo se ofereceu: “posso?” Todos responderam: “huh.” “Que tal Josefine?” Seu Apolinário riu, o Furioso gargalhou, D. Marieta fez cara de aprovação e a psicóloga concordou. Igor adiantou-se, curvou um pouco o corpo, fez uma deferência e declamou: “Tu, agora e para sempre, serás chamada de Josefine”. O caçula aplaudiu e começou a pular feito canguru; todos riram.

-         O pós-visitação

Ela partiu e sua ausência transformou-se em presença. Abriu-se um espaço único no-peito-de-todos e, sem perceber, ficaram dias convivendo com o que a moça de olhos azuis representava. Igor foi o mais atingido, portanto, tornou-se o mais efervescente. O curioso é que conversava com a psicóloga-ausente, e a imagem que escolhera, daquele dia incomum, fora o instante em que se deixou acorrentar, ajoelhada. Ele quase conseguia ver a situação através dos olhos dela: Igor nunca tivera coragem de se acorrentar, nem em pensamento. E lhe parecia absurdo que, nem por um segundo, quisesse experimentar a sensação do aprisionamento pela corrente.
O que sentiria se prendessem seu braço? O que sentiria se ficasse à mercê de alguém que viesse alimentá-lo? O que pensaria nas longas horas inertes dos dias escuros do quarto sem janela? Igor pensava, pensava, pensava. E se não pertencesse a sua família? Qual opinião formaria sobre o Furioso? O motoqueiro, naquela noite, não dormiu; abriu sua pequena janela para olhar as estrelas enquanto tentava se imaginar vizinho do Maluco do final da rua. Será que estaria enlouquecendo? O fato é que sentia uma vontade incontrolável de ver diferente, de considerar o outro lado. “A doutora algemada, a doutora algemada”, ficava balbuciando, “o que, sinceramente, a psicóloga pensava de tudo isso?”

-         A consulta

Duas semanas depois, a moça de dentes brancos conseguira marcar uma consulta para Arthur, com um psiquiatra do Ambulatório Municipal. Estava agendada para as 14 horas e trinta minutos, Igor encarregou-se de levar o irmão, na moto, e ela chegara bem antes para tentar conversar com o médico, a sós.
Havia uma fila enorme de pacientes para serem atendidos e o médico não chegava. A psicóloga, quando ouviu o barulho da moto, saiu para recebê-los e deparou-se com o Furioso agitado, fazendo caretas. O caçula, ao constatar que ela se aproximava, gritou que era uma “traidora” e que estava tramando para interná-lo. Correu e esbarrando na doutora, entrou no ambulatório, subindo as escadas, continuando a gritar enquanto apontava o dedo: “traidora, você quer me internar.” No meio do corredor, encontrou um orelhão, discou para um número imaginário e contou que não queria voltar para o hospital.
Igor estacionou a moto às pressas e correu em direção ao irmão. Ele, então, deu meia volta, saltou o muro, contornou o ambulatório e ganhou a rua. Os outros pacientes ficaram agitados e a enfermeira quis chamar a polícia; a moça receptiva insistiu para que não o fizesse e prometeu que iria acalmá-lo. Nessa hora, o irmão do Furioso já descia a rua de moto para encontrá-lo; minutos depois, ligou avisando que o seguia e os dois, então, tiveram a idéia de voltar para casa, combinando de resolver a situação quando chegassem.
A psicóloga chegou primeiro e esperou. Eles demoraram. De quinze em quinze minutos, Igor telefonava para avisar o que se passava. Quando, enfim, conseguiu conduzir o irmão, percebeu que a família aguardava na porta do bar. Arthur continuava agitado e, ao avistar a moça, começou a dizer que era médico e que era ele quem iria interná-la. Depois pediu um rim: “você é minha amiga e é médica, consegue um rim para mim”. Seu Apolinário achou melhor acorrentá-lo. “Eu preciso de um rim novo, eu preciso, consegue um rim para mim. O Igor tem um rim que funciona.” Implorava, enquanto o imobilizavam.
Todos se dirigiram para a cozinha e D. Marieta quis fechar a porta para que não fossem incomodados com os gritos do caçula. Ela pediu que a porta ficasse aberta e, depois de um tempo, foi até lá. A psicóloga sentou-se ao lado do menino-retraído enquanto os demais membros da família ajeitavam-se. Arthur falava coisas desconexas, mas mesmo assim ela respondia, completando frases e dando prosseguimento ao assunto. D. Marieta ficava tão impressionada que achava que era uma espécie de mágica ou de milagre. Em sua casa, nunca conseguiram conversar com o Furioso em crise, nunca consideraram a comunicação possível. Por quê?
Era comovente ver uma estranha entabular conversa com seu filho doente, tão agitado, Furioso. Por que não conseguia? Por que não tentara? Por que não aprendera? Tinha tanto tempo, santo Deus. Convivia com ele no bar, alimentava-o ajoelhada no quarto sem janela, levara-o para a escola, passava suas roupas, conhecia suas esquisitices mais do que a si própria. Arthur era seu menino-quieto e D. Marieta sequer conversava com ele. Uma lágrima escorreu tímida. O escuro do quarto a protegia dos outros, no entanto, aquele mesmo quarto clareava sua alma, cheia de feridas.
A naturalidade da estranha, tão perto do caçula, correndo o risco de levar um soco, a incomodava. Uma raiva começou a formar-se, a agitar-se, a apoderar-se dela. A moça não pretendia absolutamente nada e conseguia tudo. Seria uma farsante? Uma dissimulada? Seria uma dessas arrogantes que precisava da desgraça alheia para alegrar-se com seu “mundinho normal”? D. Marieta trincou os dentes e desejou que desaparecesse, que virasse fumaça e que saísse de suas vidas sem deixar marcas, indiferentemente. Parou suas reflexões exatamente nesse instante, porque Arthur pedia agora um coração novo, quis ouvir.
“O meu coração está doendo!” E a moça-receptiva ergueu o braço, colocando a mão em seu coração e o caçula colocou a sua sobre a dela. Enquanto assim permaneceram uivou como um lobo. Uns dez minutos. Uivos altos, contundentes, expressivos, feitos da dor do que não se compreende. Igor mal respirava. Seu Apolinário não acreditava e Gustavo tremia. Os uivos eram de um lobo-gente, de um lobo-gente-doente, eram sons que ocupavam o lugar de frases porque Arthur não conseguia comunicar, porque não podia compreender. E uivar daquele jeito comunicava, lançava para fora, punha no mundo a existência, humanizava.
E da comunicação dolorosa da Fúria através de um coração doente, sob as mãos de uma estranha, veio o choro. Em profusão, peito acima, necessário. Arthur chorava. E os demais se iluminavam, chorando em silêncio. E o Mundo esperou esperando, ouvindo o choro. Os da não-família calaram, também esperavam. O caçula colocou a cabeça no ombro da moça e suas lágrimas despertavam pregos engolidos, móveis destruídos, indiferenças institucionalizadas, dores insolúveis de família e explicações inúteis de livros. Foi tanta coisa passando em revista pelo quarto escuro que o Furioso ficou zonzo, que sua família praticamente levitava e a moça magra enchia-se de volume, resplandecente.
O caçula então se afastou, retirando do seu peito a mão da psicóloga, olhou nos olhos dela e falou: “Por que eu engulo caco de vidro? Por que meu coração dói? Por que eu quero morrer? Por que eu sou assim?” E afastou-se mais ainda, encostando-se na parede e chorando uma segunda etapa. A de pós-palavras que humanizam, a de pós-palavras que veiculam a percepção dolorosa dos animais que possuem auto-consciência. Depois calou, depois deitou, depois dormiu.
O que aconteceu, nesse instante, com as pessoas da Família foi que algo descolou de suas almas e deixou um vazio, uma distância, um formato de ausência. Estavam salvos. A primeira sensação que tiveram foi de ver através dos olhos dela: Seu Apolinário passou do desprezo para a aceitação, D. Marieta saiu da passividade ressentida e culposa para a iniciativa amorosa, Igor conseguiu conquistar a si mesmo na diferenciação e Gustavo teve a certeza de que existia entre pessoas.
Foi tão impressionante essa conquista que perceberam, ao mesmo tempo, que os olhos dela não eram azuis, eram verdes. E quanto à moça, ficou tão feliz por conseguir juntar os mundos de dentro e de fora que resolveu que contaria para o Mundo o que se passara no quarto escuro. Ela começaria assim: era uma vez um moço retraído que ficava acorrentado porque tinha esquizofrenia. Parecia bonito, pensara, e deveria ser. É que aprendera que do não-consolo pode-se produzir o humano, belo e renovador. Edificante. Necessariamente cotidiano, para todos nós.