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Fernando Luiz Cipriano é psicólogo. Ele possui formação em Filosofia pelo Seminário Santo Antônio (Juiz de Fora/MG), é graduado em Psicologia pela Universidade de São Paulo/SP, onde também obteve os títulos de Mestre em Psicologia Social e Doutor em Psicologia Social. Atualmente é Professor Titular de Ética Profissional da Universidade Paulista e supervisor de Estágio em Plantão Psicológico da Universidade Paulista. Psicoterapeuta de intensa atividade clínica, demonstra interesse por temas relacionados à prática clínica, à modernidade e seus desafios, à psicanálise, à identidade sexual humana, à fenomenologia, às questões morais e éticas entre outros. É autor de Matriz Terapêutica e os equívocos da prática clínica em psicologia, Annablume, 2007 e A Mulher lagarto e Outras histórias, Annablume, 2010

segunda-feira, 24 de outubro de 2011

HELENAS – A COMPLEXIDADE

           Neste Conto, estamos diante do controvertido, fascinante e complexo Transtorno Dissociativo de Identidade (TDI), que foi tradicionalmente chamado de Transtorno de Personalidade Múltipla (TPM).
         Na literatura especializada, os critérios diagnósticos para o referido Transtorno são:
1 - presença de duas ou mais identidades ou estados de personalidade distintos (cada qual com seu padrão de percepção, relacionamento e pensamento em relação ao ambiente e a si mesmo);
2 - pelo menos duas destas personalidades assumem, de forma recorrente, o controle do comportamento da pessoa;
3 – a incapacidade de lembrar informações pessoais importantes (lembranças extensas que não podem ser explicadas por esquecimentos comuns);
4 – a perturbação não se deve aos efeitos de uma droga (por exemplo, o álcool) ou a uma condição médica geral (por exemplo, convulsões parciais complexas).
         O conjunto de critérios contidos no DSM IV indica, portanto, que as formas patológicas de dissociação apresentam distúrbios ou alterações nas funções integrativas normais da memória, identidade ou consciência.


- A novidade

         Em pesquisas recentes (década de 80 e 90), os especialistas descobriram que a dissociação é, acima de tudo, uma resposta a um trauma intenso e que a maioria das síndromes dissociativas são transtornos pós-traumáticos. O que sugere que o fenômeno dissociativo constitui, até certo ponto, um novo paradigma para a psicanálise e a psiquiatria psicodinâmica porque nivela, na etiologia dos transtornos mentais, a importância da fantasia intrapsíquica com os fatos reais.
         Desde Freud e Janet, interessados em explicar estados alterados de consciência, a dissociação é considerada um mecanismo de defesa em que os conteúdos da mente são banidos da consciência. As pesquisas recentes, ao enfatizar a importância do trauma na etiologia e patogênese de diversos transtornos, destacam o aspecto adaptativo da dissociação: para uma criança que enfrenta o trauma, o fenômeno dissociativo permite o escape de uma terrível situação da realidade, oferece uma forma de isolar experiências catastróficas, automatiza comportamentos e sugere um meio de resolver conflitos irreconciliáveis.
         Em resposta ao trauma, o que se constata é que uma dissociação vertical[1] entra em curso fazendo com que os conteúdos mentais passem a existir numa série de consciências paralelas produzindo a amnésia e a fuga dissociativas. Na amnésia, a vítima “esquece” o acontecido e na fuga, “esquece” o passado criando confusão em relação à própria identidade.
E sobre a confusão referente à identidade, Fairbain Grotstein (1992) enfatiza: as defesas dissociativas formam alter egos baseadas nas divisões de percepções e experiências em relação a objetos – e os selves relacionados a cada um deles. O que, dessa perspectiva, significa que a divisão do ego em fatias verticais são baseadas em fatias verticais correspondentes às experiências incompatíveis do objeto de uma pessoa.

- Considerações Gerais sobre o TDI

1 – A prevalência de patologia dissociativa na população em geral pode ser tão alta quanto 5% a 10 %.
2 - O Transtorno de Dissociação ocorre numa freqüência de aproximadamente 3,3% de todas as internações de pacientes em unidades psiquiátricas.
3 - O diagnóstico é particularmente problemático porque existe, na maioria dos pacientes, a tendência para esconder os sintomas. Em decorrência disso, os clínicos, considerando o diagnóstico de TDI, estabeleceram uma série de temas para incluir em suas entrevistas: história de abuso físico ou sexual na infância, episódios de amnésia, distorções ou lapsos de tempo, incapacidade de lembrar fatos da infância dos seis aos onze anos, situações nas quais outras pessoas disseram que o paciente fez determinadas coisas que ele mesmo não consegue lembrar etc.

4 - Apesar de serem fenômenos diferentes, a dissociação e a capacidade de ser hipnotizado estão proximamente relacionadas. A hipnose, portanto, pode ser considerada uma dissociação induzida, provocada num ambiente estruturado.
5 – Cerca de mais de 95% dos pacientes com TDI apresentam uma história de abuso físico ou sexual na infância.
6 - O fenômeno dissociativo é encontrado nove vezes mais em mulheres do que em homens.
7 - Os alter egos apresentam diferenças na lateralidade, na escrita, na voz e dialeto e podem ter nome ou não. Diferenças significativas na atividade elétrica cerebral entre os alter egos foram demonstradas por EEG e diferenças ópticas também foram documentadas.

- Uma teoria

O pensamento atual sobre a etiologia do TDI é resumido na teoria dos 4 fatores proposta por Kluft (1984b):
- a capacidade de dissociar defensivamente frente a um trauma deve estar presente;
- experiências de vida traumaticamente sobrecarregadas;
- a forma precisa assumida pelas defesas determinada por influências e substratos disponíveis;
- experiências tranqüilizadoras e restauradoras não são disponíveis com as pessoas que cuidam.
         As implicações deste modelo etiológico são: o trauma é necessário, mas não suficiente para causar o transtorno; os conceitos de conflito e déficit intrapsíquico são relevantes no TDI (a experiência traumática pode levar a uma série de conflitos) e a falta de uma pessoa que cuide e tranqüilize em quem se possa confiar incondicionalmente quando o auto-cuidado é inadequado, constitui-se, de longe, no fator mais importante para a superação do trauma.
Em relação aos cuidados terapêuticos, o tratamento para o TDI é a psicoterapia individual (longa e árdua) associada à hipnose, quando necessário. Uma forte aliança é crucial para a continuidade do tratamento e o terapeuta deve ter um papel ativo ao enfatizar a cooperação, identificação, empatia e colaboração entre os alter egos, bem como com a personalidade hospedeira.
De acordo com Maumer (1991): “é útil definir o setting terapêutico como uma nova montagem dramática, transferencial na qual por vezes, o terapeuta representa o papel de uma figura do passado do paciente, por vezes, o papel do paciente enquanto este faz o papel de uma figura do passado e, por vezes, faz o paciente enquanto o paciente faz o terapeuta e, por vezes, vivencia estados dissociativos e confusionais à medida que o paciente evoca no terapeuta o que ele vivenciou”. (p.681)
Pois bem, após essa breve introdução utilizando a perspectiva psiquiátrica, analisemos o Caso da mulata carioca:
- estamos diante do bem sucedido atendimento – em Plantão Psicológico – de um Caso clássico de Transtorno de Identidade.
A novidade está na espantosa e rápida recuperação: sete sessões são suficientes para que ela inverta seu processo de enlouquecimento, integre as personalidades, sinta-se segura e feliz. Onde está o segredo disso?
Penso que a resposta se deva a uma série de fatores: aos recursos internos de Helena, à disposição da paciente de curar-se, à disposição do marido de que a mulher se curasse, ao encontro dela com Mariana, ao fato do encontro acontecer no instante extremo da necessidade, às características físicas e emocionais de Mariana, à poderosa intuição da aprendiz, à manipulação da variável tempo, ao supervisor e a sua experiência (ainda podemos acrescentar outros).
Há uma confluência de fatores que propiciam o sucesso terapêutico; coisa intrigante e curiosa. Muito.
No entanto, o que pretendo destacar, neste momento, é exatamente o sucesso em sete sessões. Não houve a necessidade de um longo e árduo percurso; este foi intenso, mas rápido; foi difícil, mas rápido. Está mais do que na hora de nós, psicoterapeutas, começarmos a difundir a eficácia terapêutica em poucos encontros (para todos os tipos de situação, inclusive as mais graves).
          É que a variável tempo[2], na interação terapêutica, é tão manipulável quanto outra qualquer. E existem características na parceria que aceleram ou retardam o tempo do tratamento; no Caso Helenas, a intensidade do conflito, a densidade da interação, o modo como paciente e estagiária reagem aos mutáveis e diversos momentos terapêuticos incrementam o ritmo e aceleram o contato. E as duas mulheres avançam na direção da cura.
O Conto é repleto dessa característica. Chega a ser vertiginoso o ritmo. E Mariana conhece a intensidade apenas no instante em que se encontra com Helena respondendo à altura porque “serve” terapeuticamente à solicitação de sua paciente. Penso que a aceleração pertence a ambas. No caso de Helena, arrisco dizer que o ritmo acelerado diz respeito ao adoecimento: ela tem urgência e pouco tempo. No caso da estagiária, a vocalista apresenta a capacidade de aceleração para os conteúdos emocionais referentes ao feminino, suas manifestações e trato.
E quando se juntam, uma puxa a outra e correm, potencializando o ritmo. A evidente vantagem disso é a rapidez no trato e a desvantagem é o desgaste decorrente da quantidade de energia utilizada na viagem densa e intensa.

- A temporalidade

É curioso como pouco se fala da temporalidade, no setting terapêutico.

         Vamos ao tema: cada atendimento, em cada sessão, apresenta um tempo-ritmo e este tempo não é o cronológico. Abre-se um parêntesis no tempo cronológico quando se forma a parceria terapêutica e os dois viajam, sintonizados em tempos diversos. É que, se o si-mesmo constitui-se enquanto experiência temporal, a parceria terapêutica reedita essa condição disponibilizando diversas modalidades de tempo (entrecruzadas).
E, no setting, está o passado enquanto fase do desenvolvimento: o passado contínuo (infância, adolescência, fase adulta), e o passado fixado (tempo único, não-desgastável, preenchido pelos conflitos, traumas, sintomas). Está o presente com o tempo atual, momento do exercício de identidades, resultado de escolhas (com a avaliação das perdas e ganhos, e da eficácia do si-mesmo). E também o tempo futuro, com a possibilidade da alteração do que se é.
E – ainda - no tempo que forja identidades está o ritmo da subjetividade no trato com os conteúdos afetivos e o psicoterapeuta deverá ajustar-se ao ritmo da subjetividade-paciente, podendo instrumentalizar esta variável para pleitear a eficácia terapêutica. A variável tempo, então, não diz respeito apenas à duração da sessão ou à quantidade de sessões, mas também à intensidade e à densidade no trato das questões afetivas.
Acredito que, no Conto, a viabilização da alma espelhada é que permitiu a intensidade e a densidade em alto grau. A primeira está relacionada com a potencialização dos afetos, sua vivência (com expressão) em um conflito ou em uma problemática. A segunda, com a quantidade de conflitos ou problemáticas visitadas de uma única vez, em uma sessão.
         A intensidade permite a imersão do paciente na problemática para que o tratamento aconteça em carne viva, doendo. O que conduz à cura, sem perda de tempo: as defesas e todos os mecanismos de auto-proteção serão neutralizados. A densidade, por sua vez, permite a aceleração da cura porque promove a visitação a diversas problemáticas e as encaminha para uma reorganização auto-construtiva.
Numa linguagem psicanalítica: a transferência e a contratransferência são potencializadas e manejadas com precisão, risco e eficácia, numa intensidade e densidade vertiginosas. Helena precisava ser ela mesma em Mariana e precisava que Mariana não fosse ela mesma, tudo isso em momentos alternados, num auto-diálogo, na presença do outro.
A transferência, neste Caso, não serve para interpretações, serve para Helena apreender o si-mesmo através das reações de Mariana; a contratransferência, por sua vez, serve para que a estagiária produza intervenções baseadas na lucidez afetiva com vistas à eficácia terapêutica. E a impressionante semelhança física permite a insinuação, a configuração e o arremate da condição de alma espelhada.

- A fixação

         Ainda sobre a temporalidade: no Plantão de Helena há um belo exemplo de tempo fixado: o trauma em relação ao abuso sexual. E que, segundo estudos recentes, está na etiologia do TDI. Pois bem, o que aconteceu num passado remoto continua ecoando e produzindo efeitos na alma da mulata. O tempo fixado é assim: não sofre o desgaste de outras temporalidades e o conteúdo afetivo residente neste tempo afeta sem ser afetado. É que faltaram as condições para que Helena superasse o trauma (a ausência da mãe ou de pessoa confiável que cuidasse dela) e uma das conseqüências é que a repercussão atravessa outros tempos.
É por isso que o tempo contínuo não curou o trauma de Helena: a ausência de condições favoráveis criou um mecanismo que isolou o conteúdo impedindo o efeito curativo. No entanto, por integrar um conjunto temporal de significados, acaba influenciando os demais e seus efeitos aparecerão posteriormente, muitos anos depois. Em certo sentido, é intrigante o efeito retardado do trauma: parece que “ele” trabalha na surdina e quando menos se espera, eclode.
Eis a explicação: o trauma pode ser compreendido como um tempo fixado que protegido por um mecanismo, impede o providencial desgaste do tempo contínuo. Outras camadas de tempo serão integradas ao conjunto e o tempo fixado, responsável por uma parcela do todo, afetará sem ser afetado. Porque não muda, propaga a mesma reação obrigando outras temporalidades a se submeter à intensidade dos seus efeitos.
É por isso que aparece mais tarde: a reação se constrói lentamente, produzindo efeitos em camadas de tempo anexadas ao longo dos anos e que poderão ser ativadas a partir de experiências posteriores. No caso do TDI, esses efeitos afetam a unidade da consciência, já que a compreendemos como uma conquista.
         É também por isso que o psicoterapeuta tem acesso a todo e qualquer tempo da subjetividade do paciente. A unidade da subjetividade é formada por temporalidades que se sucedem, se sobrepõem e interagem, reagindo com as demais. Um bom exemplo no Conto é o fato de Mariana interagir na sessão com alter egos que residem num tempo bem distante da idade atual de sua paciente.

A pergunta mais interessante, portanto, sobre este tema seria: o que acontece com o conteúdo afetivo do trauma para que não seja afetado pelo tempo contínuo? Considero que ele esteja relacionado à propriedade dos afetos, uma delas: a estabilidade. Esta importante propriedade perpetua a vivência e, porque a pessoa não consegue as condições de superação (seria necessário a existência de outro afeto), cria-se um mecanismo de manutenção da estabilidade. E, ainda, à intensidade da experiência, que bloqueia a ação do tempo ao produzir um mecanismo de auto-isolamento (fenômeno dissociativo - que separa determinada experiência do conjunto).
O resultado é obtido, no entanto, os outros componentes da personalidade serão atingidos pela ilha do trauma porque não estão protegidos contra ele. Delimitando: a estabilidade dos afetos mais a intensidade da experiência (dor, medo, ódio em grau máximo) acontecendo num conjunto que não pode assimilar a vivência geram o trauma.
Para a compreensão do que acontece com a ilha do trauma, em termos de dinâmica psíquica, é necessário utilizarmos a noção espacial fornecida pela metapsicologia: a experiência traumática é deslocada para uma das extremidades da configuração e “isolada” através da energia investida. O formato peculiar da ilha, por um lado, filtra a energia dos demais significados diluindo sua influência, porém, por outro, propaga com forte intensidade a energia referente à experiência traumatizante.
Seria algo do tipo:
- o fluxo de energia deparando-se com a “ilha” é dividido em dois: um é deslocado para a parte inferior e pouco a afeta porque atinge apenas a parte inferior da “experiência-ilha” e o outro é deslocado para a parte superior e afeta significativamente o conjunto porque atravessa a “experiência-ilha”, assimila o seu significado e o propaga.
        Uma concepção como esta defende que a energia psíquica ao percorrer a parte superior da ilha faz a “leitura” e integra os conteúdos afetivos existentes “nesta região”. A energia “deslizando” sobre a parte superior apresenta, portanto, a propriedade de integração e propagação de representações circundado pela referida “vivência”.
         O mesmo ocorre com a parte inferior, que fará, no entanto, a leitura de experiências localizadas “noutras” regiões (as localizadas “abaixo” da ilha do trauma).

É isso.

- A perfeição

Outro tema: o Plantão de Helena indica que uma das características do fenômeno clínico é a perfeição. É que, ao tomar conhecimento do Caso, fica a forte impressão de que tudo aconteceu como deveria: que o referido fenômeno aconteceu no lugar certo, com as pessoas certas, no tempo certo e do modo mais que apropriado.
         E qual a melhor palavra para denominar tal característica? Penso que a perfeição, que significa que o fenômeno clínico cumpriu sua destinação, ou seja, viabilizou a eficácia terapêutica através da correspondência exata entre o propósito e a execução. A correspondência exata indica, portanto, que a funcionalidade atingiu seu potencial máximo ao promover ajustes e reajustes integrados, justapostos, rápidos e eficazes.


- O homem-que-cura

Mais um tema: a quantidade de enigmas presentes no atendimento de Helena e a sábia orientação do supervisor para que a estagiária não sucumbisse à tentação de decifrá-los. O motivo da orientação é claro: concentrar-se no essencial, há desvios demais, caso contrário, corre-se o risco de perder de vista a eficácia terapêutica.
A importância deste conceito – eficácia terapêutica - não reside apenas no fato de destacar o objetivo da interação constituída, mas serve de referência para que o profissional não se distraia, nem se afaste do seu lugar-função. É uma referência de si para consigo, que serve de avaliação e de reconhecimento: uma oportunidade-condição para consolidar a identidade do homem-que-cura.  
O que significa que para alcançar a eficácia terapêutica, não basta que o profissional identifique “o direcionamento adequado”, tem ainda de vencer tentações para não enveredar para direcionamentos que conduzam à exploração conceitual, à teorização, e à manutenção das condições do paciente. O que não é fácil. Isso faz com que o exercício de nossa profissão seja verdadeira arte.
        Considero que a motivação maior do psicoterapeuta seja, então, encarnar a identidade do homem-que-cura. O que conduz à questão: acima de tudo, o que se pretende ser? Um teórico? Um sábio? Um técnico? Um pesquisador? Ou alguém que proporciona um efeito de melhoria na vida de outra pessoa?
Uma definição razoável seria:


É o que vimos com perfeição na relação Mariana-Helena.


E a estagiária tem razão. Como negar o fascínio? Como ignorar os convites à curiosidade? É a complexidade do Caso que faz com que apresente tantos enigmas, pois, questões relacionadas à memória, identidade e consciência serão sempre complexas e intrigantes. Os alter egos com suas histórias, voz, características e parcelas de alma são magníficos: eis um universo fascinante, desconhecido, perturbador.
E Mariana vence as tentações porque almeja ajudar Helena, simples assim.
Ainda neste assunto e retomando a questão inicial: por que a paciente melhora? De onde vem a súbita guinada? Ela melhora por muitos motivos. Um deles é quando inicia seu contato com Mariana. E cada sessão, cada intervenção, cada reação de ambas conduzem ao resultado positivo. O encontro ocorre num momento decisivo: a paciente está em uma encruzilhada e chega ao lugar certo, na hora certa
         Do mesmo modo que houve uma confluência de fatores para que a mulata se avizinhasse da loucura, começa a “existir outra” confluência no sentido contrário. O curioso é que parece premeditado. Será? Eu não sei dizer, mas também não pretendo negar “a coincidência”. O fato é que a integração da personalidade acontece em um ritmo vertiginoso, a ponto de surpreender e parecer magia[3]. O difícil não é compreender a integração, o difícil é explicar porque tudo contribuiu para isso.
Na segunda sessão, em que Mariana conversa com Ninfomaníaca, a fala bem-dita sobre o Amor e a Destruição atinge em cheio o cerne do conflito: Helena caminha na direção da Destruição do seu objeto de amor e não quer fazer isso, então prefere auto-destruir-se. É uma disputa entre o Amor e a Destruição, com toda intensidade e densidade.
Eu considero que este é o instante da inversão: a partir daí, os efeitos serão propagados afetando outras representações e a engrenagem empregará toda sua força para redirecionar a vida emocional de Helena. A energia que a conduzia para a doença será reinvestida na cura.
O que indica que em termos psíquicos, o Todo possui propriedades distintas de suas Partes: a fala bem-dita, localizada e específica, dá início a um processo que integra as demais “regiões”. É como se o Todo submetesse as Partes às suas leis com o objetivo de alterar a configuração, nesse instante, soberana.


- A intuição

No Conto, vemos que a inexperiência da aprendiz é compensada por uma poderosa capacidade diagnóstico-interventiva: aquela que é proveniente da intuição.
         Vamos ao polêmico tema: a intuição e sua manifestação:
- Mariana desconhecia essa habilidade (em si mesma);
- a referida habilidade surge inteira (pronta e acabada);
- o fenômeno se manifesta em totalidade;
- o que se exige é um treino do “olhar”;
- não há consciência, portanto, não há controle.
Quais suas características?
         “Considero que seja a aparente ausência de raciocínio, o tempo único e a totalidade do que se vê. Em relação à ausência de raciocínio, não acredito que exista, talvez seja uma forma de raciocínio acelerada, realizada num tempo único, em que a imagem (expressando a forma) adquira supremacia e incorpore as cadeias de pensamento, apresentando assim o fenômeno na sua totalidade: a imagem em movimento seria, portanto, o modo privilegiado de manifestação do fenômeno em tempo único, que, por ser imagem, deixa a impressão que dispensa o raciocínio, porém, não o dispensa, mas o incorpora.
          A imagem em movimento, ao incorporar o raciocínio, exige do observador um treino do olhar, ou, melhor dizendo, um talento para olhar, o que implica submeter o raciocínio a outra modalidade compreensiva; por sua vez, em evidenciar-se em forma de imagem em movimento, a totalidade é o que se apresenta, porque todas as partes que compõem a imagem podem ser contempladas revelando significados, e o movimento faz com que o observador presencie as relações que envolvem as partes constituídas. O tempo único talvez indique um tempo que não exija desdobramento, isto é, que não requeira outro tipo de procedimento que não a manutenção do olhar e a movimentação da imagem ao revelar o fenômeno; coincidentemente, necessita do mesmo-tempo, que adquire a conotação de instantâneo, não porque acontece num segundo, mas porque se efetiva na mesma modalidade temporal (não desdobrada)[4]”.
         É chegada a hora (por mais que seja controverso abordar o referido tema) de atribuirmos a devida importância à intuição: ela se constitui, a meu ver, num dos pilares para o alcance da eficácia terapêutica.
E os pilares são três: o conhecimento, a experiência e a intuição - que necessitam do sopro da sabedoria para a perfeita utilização.
Detalhando:
- O conhecimento refere-se ao saber sobre a condição humana, seja ele especializado ou não: trata da alma, das emoções, da percepção, do comportamento e da intersubjetividade (as relações humanas em suas diversas facetas).
- A experiência evidencia o trato com a diversidade das situações terapêuticas e resulta na capacidade de interação sofisticada e para além dos efeitos terapêuticos. Nesse tópico estão presente a disponibilidade e a maturidade afetivas.
- A intuição corresponde ao conhecimento apropriado, pois, revela - sem equívocos - o fenômeno. Refere-se ao talento para “olhar” identificando condições, causas e efeitos na totalidade temporalizada.
Associada aos três está a perfeição, como já foi dito, que refere-se à correspondência exata entre o propósito e a execução. E o sustento da perfeição vem da sabedoria, que possibilita escolhas éticas através da viabilização do Bem Maior em termos de perspectiva terapêutica.
No conto, Mariana transforma-se na detentora de um conhecimento incomum quando sua intuição permite que conheça a totalidade do fenômeno.

Ela visualiza:

- um processo de ação e reação contemplado por escolhas;
- o passado, o presente e o futuro;
- o como e o porquê;
- as Partes (autônomas) integradas ao Todo.

De posse do talento de olhar-conhecendo, sente-se parte do fenômeno sabendo que pode interferir (o modo e o instante para tanto se tornam conseqüência da possibilidade de ver).
A inexperiência da cantora, então, é compensada pelo privilégio do conhecimento apropriado e todo o conhecimento que adquiriu é submetido ao que vê. E ela escolhe fazer o que deve ser feito: ajudar Helena. A nossa aprendiz escolhe fazer de si a heroína que sempre foi, sendo este o único modo de salvar a mulata carioca.
A intuição, portanto, une dois universos porque integra quem vê e os faz funcionar em sintonia para que o si-mesmo possa deixar-se assimilar pelo Não-eu.
Eis o cerne da questão. Eis o ápice desse atendimento misterioso, denso e intenso.
E o resultado do poder da intuição, em Mariana, a conduz à humildade. O que significa que compreendeu, sendo presenteada com a validação da escolha que fez em relação à psicologia.
Pois bem, a intuição terapêutica é exatamente isso: o modo apropriado de conhecer para que a eficácia seja contemplada (através de escolhas, de ambas as partes).

- O final

Para finalizar: não houve necessidade da utilização da técnica da hipnose, neste Caso. A eficácia terapêutica dispensou essa modalidade interventiva. Os medicamentos receitados pelo médico, por sua vez, não atrapalharam o atendimento de Plantão porque não houve discordância entre o diagnóstico psiquiátrico e o psicológico (mais um indício de perfeição).
Assim como o atendimento de Helena se constituiu em enigmas, desvios e surpresas, sua análise não poderia ser diferente: há inúmeros direcionamentos apresentando possibilidades inesgotáveis de reflexão. Que a permanente reflexão, então, nos guie.

- Referências Bilbiográficas

Os autores e dados de pesquisa utilizados nesta reflexão estão no livro Psiquiatria Psicodinâmica, de Glen O. Gabbard, tradução de Luciana N. de A. Jorge e Maria Rita Secco Hofmeister. Porto Alegre, Artmed, 1998, Segunda edição.
Os Transtornos Dissociativos estão localizados na Seção II, da página 174 à 198.
Em relação ao DSM-IV: Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disordes. Fourth Edition. Washington, DC. American Psychiatric Association, 1994.

 [1] Tanto a repressão quanto a dissociação são mecanismos de defesa e, em ambos, os conteúdos da mente são banidos da consciência, no entanto, eles diferem no modo como os conteúdos mentais são manejados. Na repressão, é criada uma dissociação horizontal pela barreira da repressão e o material é transferido para o inconsciente dinâmico.  Diferentemente, uma dissociação vertical é criada na dissociação de forma que os conteúdos mentais existem numa série de consciências paralelas.
 [2] De acordo com a compreensão proposta pela Matriz Terapêutica, o fenômeno clínico é composto por sete variáveis: o paciente, o psicoterapeuta, a parceria formada por eles, o tempo, a teoria, o objetivo e o supervisor.  No instante em que o paciente e o psicoterapeuta se encontram ocorre o start, as variáveis interagem afetando e sendo afetadas e o fenômeno progride em sua constituição. A priori, nenhuma das sete variáveis deve sobressair e o profissional tem como objetivo hierarquizá-las (na medida em que apreende o fenômeno) para produzir as intervenções.
 [3] Héctor Fiorini, em seu livro, Teoria e Técnica de Psicoterapias, apresenta a melhor explicação que conheço sobre as notáveis mudanças que os pacientes podem conseguir num período breve de atendimento. Ele faz referência a ciclos de crescimento autônomo em espiral (ascendente ou descendente) com base em modelos policausais de ação em cadeia. Associado à autonomia do ciclo verifica-se um caráter de bipolaridade em sistemas de oposição binária funcionando sem pontos intermediários de significação (regime de tudo ou nada). O sinal global do ciclo seria invertido através de estímulos breves ou de escassa intensidade ocasionando saltos de significação. A explicação encontra-se no capítulo 09 – Dinamismos e níveis da mudança em psicoterapias, Martins Fontes, 2008.
 [4] Os parágrafos citados estão localizados nas páginas 168 e 169 do meu livro, “Matriz Terapêutica e os equívocos da prática clínica em psicologia”. Eu mantive os grifos originais.
 

segunda-feira, 15 de agosto de 2011

"Teoria sobre a Gênese da Psicopatia - Análise do conto Martim".

MARTIM – A DESUMANIDADE
 
          Neste Conto, estamos diante do desconcertante e complexo tema da psicopatia. São poucas as condutas humanas que apresentam a capacidade de provocar tamanha indignação, perplexidade e revolta. E a primeira reação-explicativa é denominar de não-humano o protagonista, é concebê-lo como uma criatura moralmente deformada, configurando um exemplar monstruoso que será afastado do convívio social.
         E assim deve ser: o psicopata é um risco para os demais. E não há tratamento ou solução para casos assim; o único procedimento é impedi-lo de agir, restringindo sua liberdade. E mantê-lo aprisionado, para sempre, se possível.
         E do ponto de vista teórico-clínico o que dizer sobre ele?
         A dificuldade persiste. É extremamente difícil a tarefa de explicar porque alguém mata um semelhante e continua a fazê-lo sem culpa e arrependimento. Os especialistas até discorrem sobre aspectos diversos que identificam a psicopatia, no entanto, construir uma teorização coerente (e convincente) é um desafio e tanto.
         Eu, nesta análise, seguirei as pistas que o Conto fornece; penso que desta forma seja mais simples. E se, ao final do percurso, conseguir juntar características, identificar um funcionamento e apresentar uma hipótese, me darei por (extremamente) satisfeito.
         Em primeiro lugar, para Martim, matar Gabriel é positivo. E assim acontece porque o coloca mais perto do que realmente é, fortalecendo o si-mesmo. Este é o ganho que o ex-jornalista obtém com o primeiro assassinato (e com o ato de matar): o poder sobre a existência de outrem potencializa o alcance da sua força de vida ampliando os seus limites.
         Para matar, Martim precisou tornar-se mais forte, mais ágil, mais bonito, mais magro, mais determinado, mais concentrado, mais e mais e mais. E ao executar o primeiro assassinato, prudentemente, esperou-observando para identificar as reações e verificar se confirmava o que pressentia.
         Tal atitude nos autoriza a supor que ele confirma, ao longo da vida, o que trazia consigo em formato de possibilidade. E faz isso pacientemente, conscientemente, teimosamente. O que deixa a impressão de que, em certo sentido, pôde escolher. E que jamais alterou a direção de sua escolha.
         E aqui já nos lançamos na desafiadora aventura de hipotetizar.
         Será que a psicopatia pode ser compreendida desse modo? E se puder, a nossa hipótese teria este início: existe no indivíduo uma possibilidade-inscrita que, ao longo da vida, será confirmada (ou não).
         A possibilidade-inscrita corresponde a um funcionamento singular que reivindica a confirmação e aqueles indivíduos que a apresentam, no decorrer dos anos, poderão viabilizar o gesto-psicopata. Então, se assim for, existe uma categoria de pessoas que traz um tipo de funcionamento mental que as habilita ao ato destrutivo.
         O que também significa que as pessoas dessa categoria podem exercer a psicopatia de duas formas: em potência ou ato. Martim permanece diversos anos na potência, enamorado da perspectiva de concretizar o que vez ou outra vislumbrava. E, por fim, o professor de inglês atravessa o portal definitivo.
Em termos de funcionamento, o indivíduo, na potência ou no ato,  estabelece as mesmas relações com o mundo: ele irá manipular, usar e destruir as pessoas para afirmar o si-mesmo. O que difere é o grau de uso e de destruição. A subcategoria psicopatia-em-potência viabiliza o uso e a destruição, porém, o gesto correspondente não resulta em um efeito definitivo permitindo que a vítima se “recupere”. E o psicopata pode até passar despercebido pela vida afora, não comprometendo sua existência (nem a dos demais).
 O que significa dizer que, em termos de dinâmica psíquica, algum fator o impediu de levar às vias de fato o seu propósito, sua vocação. É razoável pensar desse modo e pensar ainda que exista um número expressivo de pessoas nessa parcela da categoria.
         E se assim for, também é possível pensar em prevenção e correção, na infância e na adolescência, evidentemente. O que indica que o ato tem um poder incomensurável (porque definitivo) na psicopatia: reforça a tendência do si-mesmo estabelecendo compensações e promovendo a consolidação de uma identidade.
         Em termos de dinâmica psíquica, as poucas chances de reverter a psicopatia ficariam, com o ato-destrutivo, definitivamente desprovidas de força de influência. E penso que a não-reversibilidade advém da fragilidade dos fatores que poderiam alterar a tendência estabelecida: não se trata de um conjunto de significados capazes de imprimir outro direcionamento, trata-se tão somente de mecanismos/recursos isolados, destituídos de energia e contendo significados parciais, incapazes de sustentar outro direcionamento.
         O caráter definitivo da psicopatia, portanto, do ponto de vista psíquico, estaria localizado na homogeneidade de significados e na predominância de um tipo: aquele que exclui a capacidade do protagonista de sentir culpa ou arrependimento.
         O psicopata-em-ato se caracteriza, então, por apresentar a configuração mental que operacionaliza a destruição das pessoas, não se arrepende disso e é incapaz de alterar esse comportamento. É no que Martim se transformou depois de matar Gabriel. Quais seriam, portanto, as características de um psicopata?
         No caso do nosso protagonista, ele menciona uma divisão radical entre o si-mesmo e o outro. Um distanciamento significativo, que apresenta divisórias bem demarcadas e que o autoriza a existir reagindo de forma a desconsiderar a opinião alheia. O que significa que as relações que mantém com as outras pessoas não é suficiente para produzir o impedimento da destruição, ou seja, o si-mesmo não é afetado pelo outro.
         Eu penso que esta é a característica central da psicopatia. O si-mesmo é investido de um quantum de energia que impede a inscrição do outro Nele-mesmo. É o que os especialistas denominam de Narcisismo e que, a meu ver, resulta da tensão entre o si-mesmo e o outro, em determinada fase da vida em que o psiquismo está iniciando sua construção.
         E que a noção de Outro surge associada às sensações desagradáveis decorrentes dos (próprios) impulsos não satisfeitos ou de impulsos hostis, existentes na condição humana. O psicopata seria então, em última instância, uma pessoa que não suporta a existência de necessidades e reage a elas atacando. O que significa que não suporta a autonomia da existência: que alterna sensações agradáveis com sensações desagradáveis e que se constrói na movimentação.
         E ao avançar em seu processo de consolidação do si-mesmo, o psicopata atribui – definitivamente - ao Outro seu descontentamento porque é a parcela do mundo não-sujeita a suas intenções (e controle). Ele não foi capaz de suprir o seu descontentamento através de compensações nem de simplesmente suportá-lo. Na verdade, ao atacar, “acredita” que compensa as sensações desagradáveis manifestando a hostilidade e provocando a destruição. Assim, produz a ilusão-crença de que a vida está sob seu poder, que pode alterá-la (ainda que às avessas).
         O psicopata seria, então, um equivocado que faz da destruição a resposta à autonomia da vida.
         Isso explicaria o poder altamente destrutivo dessa categoria de pessoas, mas não explica a ausência do arrependimento. Penso que a ausência viria do Narcisismo extremado, em que o si-mesmo é investido de energia até auto-isolar-se. As camadas de energia conduziriam a uma espécie de cristalização em que a indiferença pelo outro seria a conseqüência natural.
         A questão da ausência do arrependimento, na psicopatia, portanto, está relacionada ao investimento de energia, em que a quantidade excessiva produz uma cristalização que resulta na indiferença em relação à existência dos outros. E a instalação da indiferença elimina a capacidade de controlar o comportamento através da concepção de certo/errado.
         A indiferença, alojada no psiquismo humano, faz com que este indivíduo saiba o que é certo ou errado, mas que não aja de acordo com isso. A culpa e o arrependimento inexistem para ele, ou seja, o si-mesmo protegido pelo Narcisismo não reconhece essas realidades afetivas[1]. E de forma irreversível, definitiva.
         O que é curioso é que eles, representantes da indiferença-intersubjetiva são capazes de amar e receber amor (pelo menos em certo grau). Veja no Conto, Martim foi. E existe uma controvérsia em relação a esse ponto: os psicopatas são capazes de amar? Eu sou daqueles que defendem que sim, em certo grau, como já disse. E pelo seguinte: a condição humana se constrói na multiplicidade de significados, portanto, paralelo à indiferença-intersubjetiva existirão significados que reivindicam a presença do Outro de forma não-indiferente.
         Principalmente, no que diz respeito à básica necessidade humana de sentir-se amado. É por isso que não podemos considerar o psicopata não-humano, ele se constitui numa variante humana, aquela que é portadora do grau máximo da indiferença-intersubjetiva, porém, não se livra da necessidade de sentir-se amado. Um belo exemplo dessa situação, aparentemente contraditória, é a relação do Dr. Lecter com Clarice Starling: ele[2] a trata como sua garota e poupa sua vida num ir e vir enamorado, que chega a ser comovente.
         É que a personalidade[3], como já disse, manifesta-se na multiplicidade de significados e a versatilidade é uma característica do si-mesmo. Isso resulta, por exemplo, num psicopata que ama, mas que não se vê impedido de matar pessoas: e convenhamos, uma coisa não tem relação com a outra. Parece que tem, mas não tem. Sentir amor por alguém corresponde a uma Necessidade e manter-se indiferente a outros corresponde a uma Dificuldade com a aceitação das sensações desagradáveis da existência. O que uma coisa tem a ver com a outra?
         As duas situações partem de necessidades/condições/reações diferenciadas e se estruturam no psiquismo em regiões distintas: a energia psíquica flui em todas as regiões e as integra sendo que o formato de uma região influencia a outra, por isso, a noção de grau é apropriada: ama-se em certo grau, o grau que a indiferença-intersubjetiva permite. O que também explica a variedade de psicopatas: há aqueles que amam menos e aqueles que amam mais, isso dependerá do grau de rigidez da indiferença-intersubjetiva.
         É isso.
 
1 Em relação ao desenvolvimento de sua personalidade, é possível considerar que os conflitos inerentes à condição humana serão vivenciados de modo singular: não atravessarão a barreira do Narcisismo mantendo - praticamente - todos os afetos neutralizados. Inclusive o ódio. Não é o ódio que o move, é a reação-afirmativa de que a destruição compõe o seu ser. Ou seja, ele é o agente do sofrimento e da destruição - eis o seu lugar no mundo.
 
2 O Dr. Lecter se constitui. a meu ver, no psicopata por excelência: ele é inteligentíssimo, culto, intuitivo, prático, assertivo e letal. A sua perspectiva de abordagem dos significados atribuídos à condição humana e o seu modo de interação com o mundo indicam uma inserção que sofre pouca oscilação provocada pelo vaivém dos afetos: o que lhe confere uma assertividade precisa, inequívoca, assombrosa: o canibal não duvida, não teme, não recua, não se arrepende.

3 Neste sentido, o Dr. Lecter apresenta uma homogeneidade rara em termos de configuração psíquica: a) um direcionamento, estratégia de economia e investimento da energia sem gastos desnecessários, b) o estado de repouso e de atividade como estados – similares – na utilização da energia psíquica, c) a utilização do ato-em-si como legitimação do si-mesmo.
Na trilogia Dragão Vermelho/ O Silêncio dos Inocentes/ Hannibal o vemos em ação através de Anthony Hopkins. Assustadoramente desconcertante, sempre.