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Fernando Luiz Cipriano é psicólogo. Ele possui formação em Filosofia pelo Seminário Santo Antônio (Juiz de Fora/MG), é graduado em Psicologia pela Universidade de São Paulo/SP, onde também obteve os títulos de Mestre em Psicologia Social e Doutor em Psicologia Social. Atualmente é Professor Titular de Ética Profissional da Universidade Paulista e supervisor de Estágio em Plantão Psicológico da Universidade Paulista. Psicoterapeuta de intensa atividade clínica, demonstra interesse por temas relacionados à prática clínica, à modernidade e seus desafios, à psicanálise, à identidade sexual humana, à fenomenologia, às questões morais e éticas entre outros. É autor de Matriz Terapêutica e os equívocos da prática clínica em psicologia, Annablume, 2007 e A Mulher lagarto e Outras histórias, Annablume, 2010

segunda-feira, 15 de agosto de 2011

"Teoria sobre a Gênese da Psicopatia - Análise do conto Martim".

MARTIM – A DESUMANIDADE
 
          Neste Conto, estamos diante do desconcertante e complexo tema da psicopatia. São poucas as condutas humanas que apresentam a capacidade de provocar tamanha indignação, perplexidade e revolta. E a primeira reação-explicativa é denominar de não-humano o protagonista, é concebê-lo como uma criatura moralmente deformada, configurando um exemplar monstruoso que será afastado do convívio social.
         E assim deve ser: o psicopata é um risco para os demais. E não há tratamento ou solução para casos assim; o único procedimento é impedi-lo de agir, restringindo sua liberdade. E mantê-lo aprisionado, para sempre, se possível.
         E do ponto de vista teórico-clínico o que dizer sobre ele?
         A dificuldade persiste. É extremamente difícil a tarefa de explicar porque alguém mata um semelhante e continua a fazê-lo sem culpa e arrependimento. Os especialistas até discorrem sobre aspectos diversos que identificam a psicopatia, no entanto, construir uma teorização coerente (e convincente) é um desafio e tanto.
         Eu, nesta análise, seguirei as pistas que o Conto fornece; penso que desta forma seja mais simples. E se, ao final do percurso, conseguir juntar características, identificar um funcionamento e apresentar uma hipótese, me darei por (extremamente) satisfeito.
         Em primeiro lugar, para Martim, matar Gabriel é positivo. E assim acontece porque o coloca mais perto do que realmente é, fortalecendo o si-mesmo. Este é o ganho que o ex-jornalista obtém com o primeiro assassinato (e com o ato de matar): o poder sobre a existência de outrem potencializa o alcance da sua força de vida ampliando os seus limites.
         Para matar, Martim precisou tornar-se mais forte, mais ágil, mais bonito, mais magro, mais determinado, mais concentrado, mais e mais e mais. E ao executar o primeiro assassinato, prudentemente, esperou-observando para identificar as reações e verificar se confirmava o que pressentia.
         Tal atitude nos autoriza a supor que ele confirma, ao longo da vida, o que trazia consigo em formato de possibilidade. E faz isso pacientemente, conscientemente, teimosamente. O que deixa a impressão de que, em certo sentido, pôde escolher. E que jamais alterou a direção de sua escolha.
         E aqui já nos lançamos na desafiadora aventura de hipotetizar.
         Será que a psicopatia pode ser compreendida desse modo? E se puder, a nossa hipótese teria este início: existe no indivíduo uma possibilidade-inscrita que, ao longo da vida, será confirmada (ou não).
         A possibilidade-inscrita corresponde a um funcionamento singular que reivindica a confirmação e aqueles indivíduos que a apresentam, no decorrer dos anos, poderão viabilizar o gesto-psicopata. Então, se assim for, existe uma categoria de pessoas que traz um tipo de funcionamento mental que as habilita ao ato destrutivo.
         O que também significa que as pessoas dessa categoria podem exercer a psicopatia de duas formas: em potência ou ato. Martim permanece diversos anos na potência, enamorado da perspectiva de concretizar o que vez ou outra vislumbrava. E, por fim, o professor de inglês atravessa o portal definitivo.
Em termos de funcionamento, o indivíduo, na potência ou no ato,  estabelece as mesmas relações com o mundo: ele irá manipular, usar e destruir as pessoas para afirmar o si-mesmo. O que difere é o grau de uso e de destruição. A subcategoria psicopatia-em-potência viabiliza o uso e a destruição, porém, o gesto correspondente não resulta em um efeito definitivo permitindo que a vítima se “recupere”. E o psicopata pode até passar despercebido pela vida afora, não comprometendo sua existência (nem a dos demais).
 O que significa dizer que, em termos de dinâmica psíquica, algum fator o impediu de levar às vias de fato o seu propósito, sua vocação. É razoável pensar desse modo e pensar ainda que exista um número expressivo de pessoas nessa parcela da categoria.
         E se assim for, também é possível pensar em prevenção e correção, na infância e na adolescência, evidentemente. O que indica que o ato tem um poder incomensurável (porque definitivo) na psicopatia: reforça a tendência do si-mesmo estabelecendo compensações e promovendo a consolidação de uma identidade.
         Em termos de dinâmica psíquica, as poucas chances de reverter a psicopatia ficariam, com o ato-destrutivo, definitivamente desprovidas de força de influência. E penso que a não-reversibilidade advém da fragilidade dos fatores que poderiam alterar a tendência estabelecida: não se trata de um conjunto de significados capazes de imprimir outro direcionamento, trata-se tão somente de mecanismos/recursos isolados, destituídos de energia e contendo significados parciais, incapazes de sustentar outro direcionamento.
         O caráter definitivo da psicopatia, portanto, do ponto de vista psíquico, estaria localizado na homogeneidade de significados e na predominância de um tipo: aquele que exclui a capacidade do protagonista de sentir culpa ou arrependimento.
         O psicopata-em-ato se caracteriza, então, por apresentar a configuração mental que operacionaliza a destruição das pessoas, não se arrepende disso e é incapaz de alterar esse comportamento. É no que Martim se transformou depois de matar Gabriel. Quais seriam, portanto, as características de um psicopata?
         No caso do nosso protagonista, ele menciona uma divisão radical entre o si-mesmo e o outro. Um distanciamento significativo, que apresenta divisórias bem demarcadas e que o autoriza a existir reagindo de forma a desconsiderar a opinião alheia. O que significa que as relações que mantém com as outras pessoas não é suficiente para produzir o impedimento da destruição, ou seja, o si-mesmo não é afetado pelo outro.
         Eu penso que esta é a característica central da psicopatia. O si-mesmo é investido de um quantum de energia que impede a inscrição do outro Nele-mesmo. É o que os especialistas denominam de Narcisismo e que, a meu ver, resulta da tensão entre o si-mesmo e o outro, em determinada fase da vida em que o psiquismo está iniciando sua construção.
         E que a noção de Outro surge associada às sensações desagradáveis decorrentes dos (próprios) impulsos não satisfeitos ou de impulsos hostis, existentes na condição humana. O psicopata seria então, em última instância, uma pessoa que não suporta a existência de necessidades e reage a elas atacando. O que significa que não suporta a autonomia da existência: que alterna sensações agradáveis com sensações desagradáveis e que se constrói na movimentação.
         E ao avançar em seu processo de consolidação do si-mesmo, o psicopata atribui – definitivamente - ao Outro seu descontentamento porque é a parcela do mundo não-sujeita a suas intenções (e controle). Ele não foi capaz de suprir o seu descontentamento através de compensações nem de simplesmente suportá-lo. Na verdade, ao atacar, “acredita” que compensa as sensações desagradáveis manifestando a hostilidade e provocando a destruição. Assim, produz a ilusão-crença de que a vida está sob seu poder, que pode alterá-la (ainda que às avessas).
         O psicopata seria, então, um equivocado que faz da destruição a resposta à autonomia da vida.
         Isso explicaria o poder altamente destrutivo dessa categoria de pessoas, mas não explica a ausência do arrependimento. Penso que a ausência viria do Narcisismo extremado, em que o si-mesmo é investido de energia até auto-isolar-se. As camadas de energia conduziriam a uma espécie de cristalização em que a indiferença pelo outro seria a conseqüência natural.
         A questão da ausência do arrependimento, na psicopatia, portanto, está relacionada ao investimento de energia, em que a quantidade excessiva produz uma cristalização que resulta na indiferença em relação à existência dos outros. E a instalação da indiferença elimina a capacidade de controlar o comportamento através da concepção de certo/errado.
         A indiferença, alojada no psiquismo humano, faz com que este indivíduo saiba o que é certo ou errado, mas que não aja de acordo com isso. A culpa e o arrependimento inexistem para ele, ou seja, o si-mesmo protegido pelo Narcisismo não reconhece essas realidades afetivas[1]. E de forma irreversível, definitiva.
         O que é curioso é que eles, representantes da indiferença-intersubjetiva são capazes de amar e receber amor (pelo menos em certo grau). Veja no Conto, Martim foi. E existe uma controvérsia em relação a esse ponto: os psicopatas são capazes de amar? Eu sou daqueles que defendem que sim, em certo grau, como já disse. E pelo seguinte: a condição humana se constrói na multiplicidade de significados, portanto, paralelo à indiferença-intersubjetiva existirão significados que reivindicam a presença do Outro de forma não-indiferente.
         Principalmente, no que diz respeito à básica necessidade humana de sentir-se amado. É por isso que não podemos considerar o psicopata não-humano, ele se constitui numa variante humana, aquela que é portadora do grau máximo da indiferença-intersubjetiva, porém, não se livra da necessidade de sentir-se amado. Um belo exemplo dessa situação, aparentemente contraditória, é a relação do Dr. Lecter com Clarice Starling: ele[2] a trata como sua garota e poupa sua vida num ir e vir enamorado, que chega a ser comovente.
         É que a personalidade[3], como já disse, manifesta-se na multiplicidade de significados e a versatilidade é uma característica do si-mesmo. Isso resulta, por exemplo, num psicopata que ama, mas que não se vê impedido de matar pessoas: e convenhamos, uma coisa não tem relação com a outra. Parece que tem, mas não tem. Sentir amor por alguém corresponde a uma Necessidade e manter-se indiferente a outros corresponde a uma Dificuldade com a aceitação das sensações desagradáveis da existência. O que uma coisa tem a ver com a outra?
         As duas situações partem de necessidades/condições/reações diferenciadas e se estruturam no psiquismo em regiões distintas: a energia psíquica flui em todas as regiões e as integra sendo que o formato de uma região influencia a outra, por isso, a noção de grau é apropriada: ama-se em certo grau, o grau que a indiferença-intersubjetiva permite. O que também explica a variedade de psicopatas: há aqueles que amam menos e aqueles que amam mais, isso dependerá do grau de rigidez da indiferença-intersubjetiva.
         É isso.
 
1 Em relação ao desenvolvimento de sua personalidade, é possível considerar que os conflitos inerentes à condição humana serão vivenciados de modo singular: não atravessarão a barreira do Narcisismo mantendo - praticamente - todos os afetos neutralizados. Inclusive o ódio. Não é o ódio que o move, é a reação-afirmativa de que a destruição compõe o seu ser. Ou seja, ele é o agente do sofrimento e da destruição - eis o seu lugar no mundo.
 
2 O Dr. Lecter se constitui. a meu ver, no psicopata por excelência: ele é inteligentíssimo, culto, intuitivo, prático, assertivo e letal. A sua perspectiva de abordagem dos significados atribuídos à condição humana e o seu modo de interação com o mundo indicam uma inserção que sofre pouca oscilação provocada pelo vaivém dos afetos: o que lhe confere uma assertividade precisa, inequívoca, assombrosa: o canibal não duvida, não teme, não recua, não se arrepende.

3 Neste sentido, o Dr. Lecter apresenta uma homogeneidade rara em termos de configuração psíquica: a) um direcionamento, estratégia de economia e investimento da energia sem gastos desnecessários, b) o estado de repouso e de atividade como estados – similares – na utilização da energia psíquica, c) a utilização do ato-em-si como legitimação do si-mesmo.
Na trilogia Dragão Vermelho/ O Silêncio dos Inocentes/ Hannibal o vemos em ação através de Anthony Hopkins. Assustadoramente desconcertante, sempre.